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Para escrever este artigo, eu deveria ter visto alguns programas do Ratinho.
Mas nunca consegui ver mais do que cinco minutos daquilo, de modo que vou
falar apenas em tese.
Se o sujeito explora todo tipo de aberração, se faz o discurso da violência
e ainda faz propaganda política subliminar em prol de Maluf, o ideal seria
que fosse deletado da tela qual um vírus de computador.
Vou além: o desaparecimento de Ratinho em nada iria abalar a saúde das
instituições democráticas.
Ah, mas aí você está defendendo a censura...
Fico dividido. Sou, ou melhor, tendo a ser contra a censura. Mas que eu
tinha vontade de censurar muito do que aparece na televisão, isso também é
verdade.
Há duas discussões em jogo, ou melhor, dois gêneros de discussão que se
confundem quando se fala em censura ou controle dos meios de comunicação.
Um gênero de discussão poderia ser chamado de "principista". Ou seja,
defendemos o princípio da liberdade de expressão, logo somos em princípio
contra qualquer tipo de censura, logo, acabou a discussão.
Em geral, os defensores dessa posição usam o seguinte argumento: "se hoje
censuram o Ratinho, amanhã poderão censurar um telejornal qualquer, e depois
um filme, em seguida um livro... e quem poderá dizer onde isso acaba?"
O problema de quem raciocina por princípio é que sempre chega rápido demais
ao fim. Dou um exemplo.
É a célebre história do aviãozinho com crianças que vai para a Disneylândia.
Você deve conhecer. Usa-se para defender a tortura.
Você diz que é contra a tortura. Aí, alguém vem com a questão: "mas imagine
que um avião foi sequestrado, o sequestrador tem uma bomba, vai matar todas
as crianças dentro do avião, e você prendeu o comparsa do sequestrador, que
pode revelar como desativar a bomba se você o torturar; você tem menos de
quinze minutos para obter o segredo; você torturaria?" Aí você fica em
dúvida e diz que sim. "Logo", triunfa o interlocutor, "você é a favor da
tortura." E você fica com cara de tacho.
Não vejo razão para ficar com cara de tacho. Suponha que eu tenha dito sim,
que nessas condições eu seria a favor da tortura. Isso não quer dizer que eu
seja sempre a favor da tortura; nem estou, ao cogitar da tortura nessa
hipótese fantasiosa do aviãozinho, defendendo a tortura em qualquer
hipótese.
É a mesma coisa que perguntar se sou a favor de matar um ser humano. Claro
que não sou. "Mas nunca, em nenhuma hipótese? Nem se um bandido estivesse
ameaçando a sua vovozinha e você pudesse eliminá-lo sem risco?" Bem, nessa
hipótese eu não seria contra matar um ser humano. "Logo, você não é contra
matar seres humanos". Um momento. Continuo contra. Não defendo que se matem
seres humanos. Simplesmente a hipótese que me foi colocada não merece
generalização.
Em resumo: não vejo porque o fato de eu censurar Ratinho levaria a admitir
que em todas as circunstâncias desagradáveis, em todos os programas ou
notícias que aparecerem, estarei defendendo a censura em geral.
Outro exemplo de "principismo": na maior parte das democracias, existe o
mecanismo da reeleição. Sou a favor. Bem, se há reeleição uma vez, "em
princípio" não há como argumentar que não deve haver "re-reeleição", ou
"re-re-reeleição." O que vale para a primeira vez deveria valer
necessariamente para as vezes seguintes.
Mas o bom senso recomenda que, embora seja permitida uma reeleição, deva-se
evitar que um governante se perpetue no poder ao longo de quinze ou trinta
anos. Aqui surgiu um argumento de outro tipo, um "princípio" diferente
daquele que foi inicialmente invocado. Sim, sou a favor da reeleição. Mas
estou aberto a que esse mecanismo seja limitado, mesmo que esses limites
sejam, em tese, contrários ao princípio que defendo.
Do mesmo modo, eu precisaria ser muito fanático pela lógica e pela coerência
do raciocínio se dissesse que, querendo censurar Ratinho, estou
necessariamente obrigado a admitir que censurem Janio de Freitas.
Outra questão, entretanto, antes de acharem que sou "a favor da censura".
De que censura se trata? O que é censura? O que é controle? Seria terrível,
mesmo no caso de Ratinho, delegar a uma autoridade judiciária ou policial o
exame prévio de um programa, para que viesse da cabeça de um iluminado a
decisão sobre o que se pode ou não assistir na TV.
Mas pode-se perfeitamente imaginar sanções a um apresentador que faça de seu
programa um espetáculo de degradação humana e de sadismo. Por que nunca se
cancelou ou suspendeu a concessão --dada pelo poder público-- de emissoras
que, devendo prestar serviços de informação e entretenimento, servem como
arapucas para a credulidade popular, servem para promover a imbecilização
geral e não para promover a cultura e a democracia?
Ah, é muito subjetivo saber o que é entretenimento, o que é cultura, o que é
opinião, o que é informação... Concordo. Claro que é muito difícil definir
qualquer dos termos. E aplicá-lo de forma unívoca. Mas também acho que seria
muito difícil alguém dizer que Ratinho esteja "promovendo a cultura e a
democracia". Não está.
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