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Veneza
- Saí do Brasil pouco depois de dedicar uma coluna a "No
Limite". Nada que escrevera antes aqui motivou tamanha repercussão.
Duas horas depois do comentário estar online já havia
mensagens na minha caixa de correio.
Continuo a recebê-las, quase duas semanas depois.
O placar registra, em média, cinco mensagens de apoio a meu
texto para cada e-mail de crítica. Agradeço aos elogios
e espero mesmo continuar contando com o privilégio da sintonia
dos que os enviaram. Mas fascinante mesmo foram os ataques.
Dois dos mais fervorosos opositores ressuscitam McCarthy e me chamam
de comunista (?!?), como se fosse impossível criticar o vale-tudo
do capitalismo contemporâneo sem tornar-me automaticamente
jurássico.
Camaradas, parodiando Churchill, acho que o capitalismo é
o pior sistema do mundo, fora todos os outros, mas é preciso
suportar cada companheiro de viagem... Felizmente um e-mail solidário
do economista -keynesiano- Gilson Schwartz veio apazigar-me os ânimos.
Um leitor uruguaio radicalizou na investida pessoal. Por usar óculos
e estar branquela na foto que ilustra a coluna, diz que meu comentário
é coisa de intelectualóide que não aguentaria
o tranco no purgatório tropical da Globo.
Concordo em geral com a fórmula de Oscar Wilde (não
julgar pelas
aparências é ser superficial) mas acho que ela aqui
não nos leva muito longe.
Depois de "Survivor", o "No Limite" americano,
vem ai "Confissões",
informa o diário francês "Le Monde". Depoimentos
detalhados de criminosos confessando assassinatos, estupros, infanticídios,
coisas do gênero, captados para processos judiciais e tornados
públicos, serão levados ao ar pela emissora a cabo
Court TV. A desumanização transformada em espetáculo,
o show da violência e da morte, a mercantilização
dos dramas privados, a dissolução das noções
básicas de vida em comunidade, tudo se agudiza, numa espiral
de audiência, desespero, lucro fácil e brutalização.
Não consigo entender o que tudo isso tem a ver com meu saliente
abdomen.
* * *
Nenhum
festival de cinema me deixa mais à vontade do que o de Veneza
(labiennale). Foi o primeiro
que cobri, em 1987, para ver a consagração de Louis
Malle com "Adeus, Meninos". Tudo se concentra no Lido,
uma ilha há quinze minutos de barco da Piazza San Marco,
sempre uma esperança de refúgio no caso de uma safra
excepcionalmente fraca.
Há ainda a descontração italiana -por vezes,
próxima demais da pura e simples bagunça. As coisas
mudaram um pouco nesta Era da Celebridade, mas ainda é possível
andar aqui lado a lado de estrelas de primeira grandeza sem assistir
a maiores demonstrações de histeria. Lembro-me, nas
primeiras vindas (esta é a oitava), de tomar cafezinho ao
lado de Mastroianni e Tognazzi, sem que ninguém os abordasse.
Em Cannes, eles jamais pisariam na Croisette sem a companhia de
guarda-costas.
O programa deste ano reafirma mudanças importantes. As atrações
estão dispersas pelas várias mostras, sem aquela ênfase
toda na competição. A multiplicação
de formatos, para além da camisa-de-força do longa-metragem
tradicional, consolida seu espaço. A retrospectiva do ano,
dedicada a Clint Eastwood, é o ponto fraco, menos por Eastwood
do que pela falta de maiores pretensões. Se lembrarmos dos
ciclos dedicados ao cinema soviético e americano dos anos
20-30, no início da década de 90, dá vontade
de sair puxando orelhas.
Uma rápida lida na lista de concorrentes parece reafirmar
ser este mais um ano de predomínio criativo do cinema asiático.
Por cinco vezes nos anos 90 o Leão de Ouro voou para o Oriente
e algo leva minha intuição a apostar numa sexta viagem.
A força e a variedade demonstradas pelos cinemas chinês
e japonês em Cannes-2000 apenas aguçam a curiosidade
frente ao que veremos
por aqui na próxima semana.
Leia colunas anteriores
24/08/2000 - Na
rota do documentário
17/08/2000 - "No limite"
é circo do ultracapitalismo
10/08/2000 - Garrafa virtual
03/08/2000
- Grande
Prêmio, ano 2 - o resgate
27/07/2000 - A hora do 'Oscar' europeu
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