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Cinema de Woody perde seu pioneiro defensor
Uma destas conspirações poéticas faz com que o atual retorno de Woody
Allen às telas brasileiras coincida com a morte de um de seus mais
fiéis admiradores na crítica americana, Vincent Canby. Entre 1969
e 1993, Canby foi o crítico titular do "The New York Times".
Fomos apresentados em 1991 durante um coquetel no festival de Cannes.
Era meu batismo na Croisette. Canby me contou que era sua despedida.
Disse-me que o festival era indispensável mas exigia energias de jovens.
Como eu, completei em pensamento.
Pouco tempo depois, Canby trocava o cinema pelo teatro. A experiência
como dramaturgo bissexto o autorizava. Resenhou peças, sem uma regularidade
precisa, para o "NYT", em geral no caderno de artes de domingo. No
período que passei em Nova York como correspondente cultural desta
"Folha" (1998/99), lembro de Canby criticando sobretudo a pirotecnia
crescente do teatro americano. O câncer levou-o no último final de
semana, aos 76 anos.
Vincent Canby foi uma referência importante para minha geração de
críticos de cinema.
Tinha um estilo sóbrio e elegante. Não poderia ser maior o constraste
com sua maior concorrente, a deliciosamente exagerada Pauline Kael.
Praticamente durante o mesmo período, Canby escrevia as principais
resenhas do jornal mais influente dos EUA, enquanto cabia a Kael alimentar
polêmicas a partir do insuperável semanário "The New Yorker".
Ele era apolíneo, ela, dionisíaca. Canby sempre usava terno e gravata.
Seus textos, nunca. Enquanto as resenhas de Kael procuravam recriar
a experiência de cada filme por meio de um fluxo memorialístico arrebatador,
as de Canby preferiam, com bom humor, contextualizar as obras na cena
corrente e na trajetória de seu autor. Dos textos de Kael lembramos
logo da estética; dos de Canby, impunha-se de pronto uma ética.
Se Kael foi decisiva para o reconhecimento da geração de Altman, De
Palma e Scorsese, Canby defendeu junto ao público novaiorquino o cinema
de autores tão particulares e distintos como Fassbinder, James Ivory,
Spike Lee -e, sobretudo, Woody Allen. Ao preparar a mais recente biografia
do cineasta (The Unruly Life of Woody Allen, Scribner, 2000), Marion
Meade não hesitou em colher um longo depoimento de Canby, fazendo-lhe
justiça como pioneiro defensor da obra cinematográfica iniciada com
"Um Assaltante Bem Trapalhão" (1969).
Meade lembra que foi Canby que, vendo "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa"
(Annie Hall, 1977), definiu Allen como "o Ingmar Bergman da América".
Woody tomou o elogio ao pé da letra, para bem (A Outra, 1988) e para
mal (Interiores, 1978). Mesmo no segundo caso, Canby dedicou nada
menos que quatro artigos ao filme. Duas décadas depois, admitiu: "Não
gostei do filme na época. Não era sua forma natural. Contudo, mais
tarde passei a gostar mais (do filme) pois fazer "Interiores" exigiu
muita coragem".
Sua sucessora como crítica titular no "NYT", Janet Maslin, que passou
o cetro no ano passado, dedicou a Canby um belo obituário na edição
da última segunda. Dois trechos chamaram-me a atenção. Maslin lembra
a publicação por Canby de um diário de nove dias de trabalho em 1975.
É um precioso testemunho de uma disciplina que parece perdida pela
crítica jornalística.
Noutro trecho, Maslin cita um artigo de Canby sobre as diferenças
entre o crítico e o público como espectadores de cinema. O próprio
reconhecimento da distinção é já uma lição anti-demagógica. Assim
escreveu Canby:
"A diferença não é que os críticos sejam mais espertos do que qualquer
um. Muito longe disto. Talvez tenham um pouco mais de sorte, ao menos
por estarmos fazendo, na maioria dos casos, aquilo de que gostamos.
A diferença tem parcialmente a ver com as memórias dos filmes -todos
os tipos- que se acumulam na mente dos críticos, automaticamente,
como placa nos dentes.
Contudo, a diferença tem principalmente a ver com níveis de tolerância.
Estes, acho, explicam, mais do que qualquer coisa, as grandes cisões
que dividem frequentemente os gostos dos críticos daqueles do público
pagante".
Vá aos cinemas assistir, finalmente, "Celebridades" e, a partir de
amanhã na Mostra, "Poucas e Boas", respectivamente o antepenúltimo
e penúltimo filmes de Woody. Nestes dias, nesta terra, cada sessão
deles ergue uma prece para Canby.
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