Pais mandam adolescentes a acampamentos violentos e abusivos em 'Hell Camp', da Netflix

Folhateen convida dois jovens para resenhar documentário que mostra famílias tentando 'educar' à força seus filhos rebeldes

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São Paulo

O documentário "Acampamento no Inferno - Pesadelo Adolescente" ("Hell Camp - Teen Nightmare"), que estreou no fim de dezembro na Netflix, mostra jovens enviados a acampamentos por seus responsáveis, que esperam que eles voltem de lá se comportando melhor. O que era para ser um processo seguro vira um pesadelo porque o organizador dos acampamentos, Steve Cartisano, usa métodos questionáveis para chegar ao seu objetivo.

O Folhateen convidou dois jovens para resenhar o documentário. Leia abaixo o que eles acharam.

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Cena do documentário 'Acampamento no Inferno - Pesadelo Adolescente', da Netflix - Reprodução

História de "terror" da vida real

Nina P., 16 anos

Quando ouvi o relato de um dos adolescentes sendo arrastado pelo deserto, pelo simples fato de não querer se levantar, fiquei chocada. Afinal, sou uma adolescente também, e não consigo imaginar o que faria em uma situação de um acampamento como esse, retratado em "Hell Camp", documentário que estreou na Netflix.

O filme mostra muito dos traumas e das coisas horríveis que esses adolescentes passavam numa tal "terapia da natureza", como chama o criador do programa The Challenger. Mostra a mente de adultos que não sabiam lidar com adolescentes rebeldes. Mostra o lado das famílias, tanto dos campistas quanto do chefe do programa.

No documentário, é possível vivenciar as coisas quase como se estivesse lá, ouvindo os relatos dos conselheiros dos programas e das vítimas. Você fica em um meio termo vendo dois tipos de pensamentos: controle e medo. Você percebe como manipulavam tanto os conselheiros do próprio programa, levando-os a abusarem de adolescentes, e vê como faziam o mesmo com os adolescentes dentro do acampamento.

Para quem gosta de ver detalhadamente histórias de "terror" da vida real, recomendo muito o documentário, pois sou do tipo que adora filmes como esse.

O filme de uma hora e meia se passa em Utah, nos EUA. O objetivo do acampamento era disciplinar jovens "indisciplináveis", que faziam o uso de drogas e eram rebeldes, então eles iam até o acampamento e passavam por essa "terapia" em natureza, o que não passava de uma mentira.

Nessa prática, mais de 800 adolescentes entre 15 e 18 anos eram mandados para lá no meio da noite, quase como se estivessem sendo sequestrados em plena madrugada.

Eram arrastados por dois homens enormes, sem saber seu destino. Eram obrigados a fazerem treinamentos em um calor de até 45ºC, tanto que uma das jovens chegou a falecer nesse meio de caminhadas absurdamente grandes, sem água e comida. Eram acordados com ameaças, obrigados a matar bichos para sobreviverem.

Até hoje, vários desses adolescentes que agora são adultos possuem traumas que jamais serão recuperados.

Documentário perde a chance de debater problema para fazer espetáculo comercial

Bernardo V. C., 16 anos

No fim dos anos 1980, nos EUA, havia uma grande onda de desespero entre pais e mães americanos diante dos jovens "problemáticos e rebeldes" no país. Sem respostas para aquela situação, muitos recorreram a métodos extremos, entre eles a "terapia selvagem", que vinha crescendo em terras americanas.

Por um valor de aproximadamente US$ 16 mil, os jovens se submeteriam a várias etapas de um processo que prometia "endireitá-los" e "transformá-los em pessoas do bem", e que começava com os jovens sendo sequestrados em suas casas e levados à força até um deserto. É sobre esse e outros acampamentos o documentário "Hell Camp: Teen Nightmare", da Netflix.

O documentário mostra o contexto social em que os adolescentes estavam inseridos. Suas ações eram constantemente vistas como ações de revolta e que indicavam perigo altíssimo para a sociedade no presente e no futuro, ações que geralmente envolviam uso de drogas, pelo que é descrito no documentário.

Por estarem em uma fase de descobrimento e com os hormônios à flor da pele, os adolescentes muitas vezes entram em situações muito intensas, e para que isso não os prejudique é necessário principalmente que os responsáveis se façam presentes e ajudem o adolescente através da educação e do diálogo.

Porém, sem saber como se conectar com os filhos, muitos pais preferiram mandá-los ao Challenger, um acampamento de jovens que tinha o propósito de renová-los após 63 dias confinados.

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Steve Cartisano, que organizava os acampamentos mostrados em 'Acampamento no Inferno - Pesadelo Adolescente' - Divulgação

O Challenger foi o primeiro de três acampamentos de terapia selvagem criado em 1988 pelo veterano das forças armadas Steve Cartisano, que via a juventude da época como um sério risco à sociedade do futuro. Após serem sequestrados em suas casas, ou em hospitais, os jovens eram levados até um deserto em Utah para começarem o confinamento.

Através de caminhadas e exercícios longos e exaustivos, feitos em temperaturas elevadíssimas, e com condições de moradia insalubres, os jovens supostamente voltariam para casa com amor pleno pelos pais e uma grande vontade de estudar, e parariam de consumir drogas e cometer delitos.

Alguns até tiveram esse comportamento, mas pelo medo e opressão que encontraram. Para muitos a transformação foi negativa, e tem gente que não voltou. A jovem Kristen Chase morreu no terceiro dia de Challenger após exaustão por andar 8 km no sol escaldante.

A morte trágica de Kristen levou Steve Cartisano aos tribunais, acusado de homicídio por negligência, acusação da qual ele foi absolvido após alguns meses de caso. Steve sumiu do mapa e voltou a fazer outros dois acampamentos posteriormente, que, assim como o Challenger, foram feitos sem qualquer conhecimento do governo local e colocaram novamente os jovens em situações de insalubridade, má alimentação e até abuso sexual relatado por duas jovens em dois acampamentos diferentes.

Sobre o documentário, as entrevistas passam por cerca de meia dúzia de pessoas que foram a diferentes acampamentos de Steve Cartisano, além das filhas de Steve, um jornalista e um funcionário do Challenger que era praticamente o diretor e organizava tudo que lá acontecia, já que o próprio Steve quase nunca dava as caras em seus acampamentos.

Além deles, o documentário também dá foco à mãe e ao irmão de Kristen Chase, assim como ao advogado de defesa que ajudou a isentar Steve Cartisano da morte de Kristen. A montagem do documentário é bastante exagerada, com imagens e sons saltando na tela a todo momento para reforçar o que é dito pelos entrevistados, que muitas vezes não saem da obviedade.

Também sinto que mais do acampamento em si poderia ser abordado, e de maneira menos acelerada como foi no decorrer do documentário. Porém, o que mais me chamou atenção negativamente foi a parte humana do projeto.

Em entrevista à Variety, a diretora Liza Williams mostrou bastante sensibilidade e empatia com relação às vítimas e o ocorrido. Porém, não é possível ver essa sensibilidade em tela, já que o documentário passa uma parte considerável de sua duração ouvindo o lado da família do criminoso e suas histórias sobre como o caráter de Steve é honrável.

O ex-funcionário do Challenger também tem um tempo de tela inexplicável, falando bem mais do que algumas vítimas. Porém, talvez a culpa não seja exatamente da diretora e sim de toda uma indústria de documentários sobre temas correlatos, principalmente os de true crime, que têm sido uma grande febre nos últimos anos.

A esmagadora maioria desses projetos transforma o ocorrido em si em um grande espetáculo comercial, engrandecendo quem cometeu o crime e reduzindo as vítimas a números. Portanto, é difícil fugir desse meio por pior que ele seja, e "Hell Camp" vira mais um ingrediente dentro de uma massa homogênea.

Como adolescente, assistir a esse documentário se torna uma experiência mais desagradável, pois é fácil se colocar no lugar das vítimas retratadas, e a relação com os pais é algo que marca o período da adolescência.

E, por mais que o documentário fale sobre acampamentos que foram montados em anos passados, esse tipo de prática continua acontecendo até os dias de hoje, principalmente em países que têm uma cultura de moldagem dos jovens como os Estados Unidos.

Os casos de maus tratos e principalmente de abuso são muito tristes, mas viram apenas mais uma cena feita para chocar em meio a tantas outras, e o que poderia ser um documentário de denúncia e discussão sobre tantos tópicos, apenas reflete a indústria atual: capture a atenção primeiro, o resto a gente vê depois.

'Acampamento no Inferno: Pesadelo Adolescente' ('Hell Camp - Teen Nightmare')

  • Onde Netflix
  • Classificação 16 anos (1h30 minutos)
  • Direção Liza Williams
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