Bailarinas Ingrid Silva e Bethania Gomes, únicas negras nas aulas da infância, celebram sucesso na carreira

No Dia Internacional da Dança, brasileiras se lembram do passado e falam da importância da representatividade

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São Paulo

No consultório do médico, Bethania ouviu que o balé poderia ajudar nos problemas ortopédicos que tinha. Ela queria muito melhorar e, aos 9 anos, aceitou fazer as aulas em que sua mãe a matriculou.

"Como eu era uma menina muito magra, dentuça, com pernas juntas e pés chatos, nunca pensei que fosse bonita. A única pessoa que falava que eu era bonita era minha mãe. Mas no balé, encontrei minha beleza, minha força. Na escola, eu não era considerada boa, mas no balé eu era boa, bonita, talentosa. No balé, as pessoas me viam e eu me via", lembra.

A bailarina Bethania Gomes em cena de 'Pássaro de Fogo' - Arquivo Pessoal

Bethania Gomes não tem mais problemas ortopédicos, passou dos 9 anos, e hoje é uma das maiores bailarinas que o Brasil já teve. Trabalha como professora no Dance Theatre of Harlem, companhia e escola de balé profissional americana em Nova York.

Lá, Bethania tem muitos alunos que se parecem com ela: além de muito talentosos e obstinados, são meninas e meninos de pele negra. Mas não foi sempre assim na vida dela —nas primeiras salas de aula de balé em que pisou, só ela não era branca.

"Até teve uma outra menina, chamada Claudia, ela tinha cabelo afro e era pretinha também. O pai dela ia levá-la e buscá-la. Até que um dia ela não foi mais, e eu me lembro de ficar bem triste de ir para a aula e não vê-la", lembra Bethania.

"A representatividade é uma coisa muito importante nessa jornada", ela diz. Foi só quando sua mãe, Maria Beatriz Nascimento, historiadora e ativista do movimento negro, lhe mostrou fotos de bailarinas negras dançando ao redor do mundo, que Bethania acreditou que aquele universo também poderia ser para ela.

A bailarina Ingrid Silva, também brasileira e desde 2008 integrante do Dance Theatre of Harlem dos EUA, sabe bem do valor da representatividade. Quando olhava ao redor nas aulas de balé que frequentou na infância no Rio de Janeiro, ela se sentia deslocada.

Ingrid Silva, bailarina brasileira que integra o Dance Theatre Of Harlem, nos Estados Unidos - Eduardo Knapp/Folhapress

"Não era tristeza o que eu sentia, mas uma dúvida tipo 'Caramba, não tem ninguém parecido comigo aqui?'. Ainda tinha alguns olhares estranhos, e isso deixava a gente desconfortável", conta, se referindo também ao irmão, que praticava balé junto com ela.

Quando chegou ao Harlem, Ingrid ficou feliz porque viu muitos alunos e alunas parecidos com ela. Mas ainda havia um detalhe: as sapatilhas que Ingrid todos os alunos tinham à disposição eram em um padrão de rosa que em nada casava com o tom da sua pele.

Por 11 anos, Ingrid pintava suas sapatilhas de marrom. "Eu usava a base da minha maquiagem do rosto para pintar, uma amiga me ensinou", conta. Isso custava dinheiro —a pintura saía por cerca de US$ 12 toda vez— e tempo à Ingrid e aos outros bailarinos.

Foi então que, em 2018, a marca inglesa Freed of London, e a norte-americana Gaynor Minden, em 2019, começaram a fabricar sapatilhas em outros tons. "Percebi que aquilo era mais que uma uniformização, era parte de quem eu era também", diz Ingrid.

Nas apresentações de hoje em dia, ela veste lindas roupas de bailarina. "Uso uma sapatilha de ponta, que é uma das mais importantes para a bailarina, e um tutu, uma saia que é como se fosse uma bandejinha que fica de pé enquanto você dança", descreve.

Ela dança 34 semanas no ano, ensaio todos os dias das 10h às 18h, e viaja o mundo todo mostrando sua arte. Também é mãe da Laurinha, de 2 anos, que está com a mãe sempre que pode. "Ela se encantou pelo balé e adora me ver dançando", diz.

Ingrid diz que o apoio dos pais é fundamental para crianças que querem dançar desde pequenas. E recomenda que meninas e meninos negros que se vejam em situações parecidas com as que ela e Bethania passaram na infância não abaixem a cabeça nem desistam.

Elas duas, aliás, são autoras de livros infantis em que contam suas histórias de superação: "A Bailarina Que Pintava Suas Sapatilhas"(ed. Globo) e "Betha, a Bailarina Pretinha" (ed. Jandaíra).

"Minha mãe via o futuro, era uma grande visionária e não tinha medo de sonhar. Foi a primeira pessoa que me viu como bailarina", lembra Bethania. "Na primeira vez em que fui me apresentar no fim do ano, eu disse que não ia entrar no palco porque ia ser a única pessoa preta do lugar, um pontinho preto numa fila branca."

"Ela então falou que era para eu ir e dançar só naquele ano. Ela sabia que não ia ser só isso. Ela sabia que eu ia estar aqui até hoje."

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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