Biólogos de campo precisam coletar animais vivos na natureza para estudá-los

Cientistas têm empatia, mas o processo é importante para produzir conhecimento; tudo é feito de maneira a diminuir o sofrimento dos bichos

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São Paulo

O dia começa bem cedo, antes das sete horas da manhã. Após um café reforçado, a equipe de herpetólogos (especialistas em répteis e anfíbios) do Instituto Butantan deixa o alojamento, em Guarujá, litoral de São Paulo, para uma embarcação onde vão seguir viagem até a ilha da Moela, distante 2,5 quilômetros da costa.

No corpo, calças e blusas de manga comprida, geralmente em tons de verde ou bege, botas e galochas grossas (para evitar picadas) e boné. Nas costas, as mochilas com cadernos, lápis, lanterna, câmeras fotográficas, pinças compridas (para segurar os animais), luvas e alguns sacos de plástico ou algodão. A expedição em busca de uma nova serpente recém-descoberta para a costa paulista está só começando.

O biólogo e curador da coleção de Herpetologia do Instituto Butantan, Felipe Grazziotin, em meio aos vidros com serpentes preservadas em álcool na coleção
O biólogo e curador da coleção de Herpetologia do Instituto Butantan, Felipe Grazziotin, em meio aos vidros com serpentes preservadas em álcool na coleção - Karime Xavier/Folhapress

Pode parecer um trabalho dos sonhos para os amantes da natureza, mas ele também é cansativo, principalmente quando é preciso caminhar longas distâncias para conseguir ver um animal no meio da mata. As cobras são animais geralmente tímidos, que costumam fugir dos humanos.

Por isso, esses profissionais precisam não só ter o olhar atento, como também fazer armadilhas com baldes para pegar esses animais na natureza.

E pegar, aqui, significa capturar —pense como uma "caça aos pokémons" da vida real. Depois, o biólogo coleta todas as informações mais importantes, como onde foi encontrado o bicho, o horário, como ele estava, se era macho ou fêmea, tira algumas fotos, e coleta pequenas amostras biológicas, como escamas (que depois vão fornecer dados de DNA). Por fim, matam o animal.

A essa altura, você leitor deve estar se perguntando: mas se eles gostam dos animais, por que vão matá-los?

A Folhinha fez a mesma pergunta para o biólogo Felipe Grazziotin, responsável pela coleção de Herpetologia do Butantan e pesquisador principal da expedição. "A gente sabe que essa espécie está em grande perigo de extinção. Então, provavelmente, se a gente voltar daqui a 30 anos, ela e a floresta em que ela vive já não existirão mais", responde ele.

Felipe se refere à serpente descrita por ele e sua equipe, a Bothrops germanoi, uma jararaquinha encontrada somente na Ilha da Moela. Ela recebeu este nome em homenagem a Valdir Germano, técnico da coleção do Butantan, um grande conhecedor de serpentes. Devido à destruição da ilha, é provável que a previsão da equipe esteja certa.

A nova espécie de jararaca, Bothrops germanoi, encontrada na Ilha da Moela, em Guarujá, litoral de SP; equipe do Butantan fez expedição que ajudou na descoberta da espécie
A nova espécie de jararaca, Bothrops germanoi, encontrada na Ilha da Moela, em Guarujá, litoral de SP; equipe do Butantan fez expedição que ajudou na descoberta da espécie - Marcelo Ribeiro Duarte

Conhecer toda a diversidade de animais, plantas, fungos e outros seres vivos que habitam o planeta junto de nós, humanos, é função dos biólogos. E a única forma de fazer isso é por meio das coletas de alguns indivíduos de espécies diferentes para coleções científicas.

A gente também faz um trabalho importante com algumas espécies venenosas, que podem ser estudadas para novos medicamentos ou terapias

Felipe Grazziotin

biólogo

No caso de Felipe, ele e a sua equipe estão estudando as espécies de jararacas que vivem na América do Sul e como elas evoluíram a partir de um ancestral comum. Isto é chamado biologia evolutiva ou sistemática.

Além da importância da pesquisa para o conhecimento da nossa biodiversidade, o trabalho vai também ajudar a repor parte do que foi queimado no incêndio sofrido pelo Instituto Butantan em 2010. Na época, a coleção tinha mais de cem mil indivíduos de cobras preservadas, sendo a maior coleção de serpentes brasileiras do mundo —quase 90% de tudo isso foram perdidos com o fogo.

"A nossa coleção tem uma particularidade de receber entre 1.500 e 2.000 serpentes a cada ano trazidas pelas pessoas, que as encontram em suas casas, na fazenda, na praia. Então não é só o que é coletado na natureza, mas também o que a população vê no dia a dia", explica o pesquisador.

O conhecimento também vai ajudar os cientistas a apontar para os governantes quais são as principais áreas que precisam de políticas específicas para preservação dos animais. "A gente também faz um trabalho importante com algumas espécies venenosas, que podem ser estudadas para novos medicamentos ou terapias."

É importante também conhecer as espécies que podem desaparecer por causa de obras, explica a bióloga Daniela Gennari, coordenadora de carbono e soluções ambientais na consultora ambiental ECCON.

"A depender do tipo de empreendimento que vai ser construído, se for uma usina hidrelétrica ou uma eólica [vento], nós fazemos uma avaliação do impacto ambiental naquela região. Então, uma onça-pintada, que é um animal que vive em uma área grande, tem um tipo de impacto, enquanto um sapinho-pingo-de-ouro [gênero Brachycephalus], que vive no chão da mata atlântica e tem por volta de 2 centímetros de comprimento, tem uma área muito menor", explica ela.

Por isso, se uma usina for construída e inundar a única área onde o sapinho vive, ele pode desaparecer para sempre da natureza. Triste, não?

É uma dualidade que vivemos, porque a gente gosta dos bichos, mas entende a necessidade de fazer a coleta para produzir esse conhecimento. Então buscamos fazer da maneira mais rápida e indolor possível, sem o sofrimento do animal, normalmente usando um procedimento chamado eutanasiar, com um remédio que faz dormir para sempre

Daniela Gennari

bióloga

E aí, o registro que fica na coleção é como um testemunho de que aquela espécie viveu naquele local e naquele determinado tempo. Segundo ela, este material vai poder ser aproveitado para uma série de informações, como sua anatomia interna e externa, o seu código genético (que o diferencia de outras espécies), do que ele se alimentava, etc.

Isso é especialmente importante para espécies que os cientistas classificam como ameaçadas de extinção, que podem desaparecer devido à destruição do meio ambiente pela ação humana.

Por fim, a bióloga conta que esse processo de coleta dos espécimes no campo –eles usam o nome "espécime" para cada indivíduo de uma mesma espécie ou grupo capturado– é feito da maneira mais ética e respeitosa possível.

"É uma dualidade que vivemos, porque a gente gosta dos bichos, mas entende a necessidade de fazer a coleta para produzir esse conhecimento. Então buscamos fazer da maneira mais rápida e indolor possível, sem o sofrimento do animal, normalmente usando um procedimento chamado eutanasiar, com um remédio que faz dormir para sempre."

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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