Descrição de chapéu universidade dinossauro

Coleções científicas ajudam a entender vida na Terra, mas correm risco por falta de verba

Acervos guardam milhões de exemplares que representam fauna e flora passada, presente e futura

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Vista do Jardin du Roi (Museu de História Natural de Paris), litografia em cor, anônimo, 1808 Arquivo MNHN

Ana Bottallo
Ana Bottallo

Bióloga, possui mestrado em zoologia e doutorado em paleontologia pela Universidade de São Paulo e Museu de História Natural de Paris (França). Cobre ciência e saúde na Folha desde 2020. Assina também a newsletter Cuide-se, com novidades sobre saúde, bem-estar e ciência.

[RESUMO] As coleções científicas são um patrimônio da humanidade. Elas contêm informações sobre a vida passada, presente e podem também dar pistas da vida futura, indicando padrões de extinção das espécies após eventos naturais ou por ação humana. No entanto, elas próprias estão ameaçadas em um mundo cada vez mais digitalizado, com a desvalorização do profissional responsável pela curadoria e com acervos reduzidos e mal conservados.

Pode ser que você já tenha andado em frente ou até mesmo visitado um museu de história natural. Ponto turístico de adultos e crianças interessados por ciências e pela natureza, essas instituições, muitas vezes abrigadas em prédios históricos, preservam acervos centenários que contam a história, evolução e distribuição dos organismos vivos e já extintos.

Nas salas expositivas, muitas vezes são exibidos esqueletos fósseis, animais taxidermizados e dioramas de diferentes ecossistemas que ilustram a história e a diversidade da vida na Terra.

Vista do Jardin du Roi (Museu de História Natural de Paris), litografia em cor, anônimo, 1808 - Arquivo MNHN

Mas são nas salas internas com armários repletos de exemplares, frequentemente armazenados em frascos ou caixas dispostos em milhares de gavetas e prateleiras, que se encontram os verdadeiros tesouros do patrimônio material destes museus: a informação contida em cada espécime irá nos dizer como eram os animais, plantas, solo e outros elementos naturais do passado.

"As coleções científicas são um patrimônio da humanidade. Elas contêm registros de cada indivíduo que viveu em um dado espaço e tempo. Cada um desses espécimes é um testemunho não só dele, mas de todas as gerações que o antecederam, de toda a história climática, das relações que teve com outros indivíduos", explica o herpetólogo (especialista em anfíbios e répteis) e professor da USP Miguel Trefaut Rodrigues.

Por essa razão, essas coleções devem ser preservadas continuamente. "Daqui a 200, 300 anos, algumas das populações que foram amostradas no nosso tempo ou no século passado vão dar informações cruciais para compreender o processo evolutivo", afirma.

As primeiras coleções científicas foram criadas na época das grandes expedições europeias, quando naturalistas deste continente viajavam mundo afora e coletavam tudo aquilo que encontravam nas regiões exploradas —em um movimento hoje muito criticado pelo colonialismo científico.

Mas, à época, o interesse das explorações era tanto científico quanto catalográfico: ter os exemplares mais belos de zebras, leões e guepardos africanos, encontrar uma planta rara na Indonésia, levar os artefatos de povos originários das Américas, registrar os diferentes tipos de conchas nas praias do Pacífico.

Gafanhotos da família Tetrigidae pertencentes ao Museu Nacional e atualmente na coleção Zoológica da Universidade do Estado do Pará (Uepa) através de empréstimo - Nailana Thiely - 17.set.18/Folhapress

Os itens colecionáveis formavam os chamados "gabinetes de curiosidade", que seriam embriões das coleções científicas. Não é à toa que o mais antigo museu de história natural, o Museu de História Natural de Paris, na França, foi estabelecido onde era antes o Jardin du Roi (jardim do rei) —mais tarde Jardin des Plantes—, em um bairro nobre na capital francesa, onde eram cultivadas plantas medicinais utilizadas para tratar a família real.

Junto do jardim havia um ménagerie (ou zoológico) e passaram a ser acondicionados tanto os animais vivos trazidos das expedições quanto os objetos do "gabinete de curiosidades".

Apesar do caráter real, a construção do museu de Paris iniciou um movimento que depois seria replicado em outras cidades importantes da época, como Londres, Viena e Bruxelas.

Graças a essas coleções, naturalistas interessados na diversidade de plantas e animais começaram a estudar aqueles espécimes, dando início à disciplina de taxonomia (que consiste em nomear e catalogar os seres vivos) e sistemática (que busca entender a sua história evolutiva). "Esse foi um período de construção do conhecimento sobre a nossa biodiversidade e os processos evolutivos na Terra", explica Rodrigues.

As coleções científicas são, assim, imprescindíveis para o conhecimento da evolução e distribuição dos seres vivos no mundo. Só conseguimos comparar diferentes indivíduos de uma mesma espécie, ou espécies diferentes incluídas em um mesmo gênero, através de padrões, como coloração, tamanho, alimentação, que podem ser observados nos espécimes em coleções. A partir deles é possível saber se uma determinada condição ambiental tem efeitos sobre o padrão evolutivo e de dispersão de um grupo.

"Cada indivíduo de uma população biológica, seja um animal ou planta, vai ter características particulares, associadas ao crescimento em condições climáticas específicas. Com as coleções conseguimos não só estudar, mas também reconstruir a história passada", afirma a professora do Laboratório de Sistemática, Evolução e Biogeografia de Plantas Vasculares do Instituto de Biociências da USP, Lúcia Lohmann.

Além dos efeitos que o ambiente tem sobre os seres vivos, as coleções biológicas também podem nos dar pistas sobre aquilo que já não existe mais. "Há uma estimativa de que cerca de metade de todos os exemplares depositados em museus representa populações já extintas. E, pensando que as coleções não são estáticas, elas vão crescendo e mudando com o tempo, daqui a 50, 100 anos, esse número pode ser ainda maior", diz Lohmann.

Calcula-se que existam no mundo de 10 a 100 milhões de espécies de seres vivos. Os cientistas conseguiram descrever 1,3 milhão delas. Fica claro, assim, que o conhecimento que temos sobre a diversidade na terra ainda é extremamente limitado, mesmo que novas espécies sejam descritas diariamente em todo o mundo.

"Costumo dizer que as coleções são as chaves que guardam esse conhecimento. É como se abríssemos uma caixa e nela esteja refletida a história da biodiversidade presente e passada, inclusive a nossa história política e social, pois as coleções dependem de esforços humanos de coleta", explica a botânica.

Tais esforços, porém, estão cada vez mais ameaçados devido ao crescente desinteresse por parte dos governos no incentivo às coleções e aos profissionais responsáveis pela sua curadoria e nos recursos disponibilizados para sua manutenção.

Na virada do século, com o advento das tecnologias mais modernas de biologia molecular, as coleções científicas passaram também a ser um repositório fundamental de informação genética.

A partir de pequenos fragmentos preservados do organismo é possível extrair o DNA e reconstituir a história evolutiva daquele indivíduo. Isso tem levado, inclusive, à descoberta de novas espécies a partir de exemplares depositados em museus há mais de 200 anos.

Por outro lado, há quem acredite que as amostras genéticas devem ser guardadas, mas não os exemplares —ameaçando, assim, a existência das coleções físicas. Entretanto, tal visão não considera que organismos vivos são sistemas complexos.

Hoje em dia, esses estudos procuram entender a relação entre genoma e o fenótipo (características externas) do indivíduo em uma abordagem chamada integrativa, e que depende dos exemplares preservados inteiros, e não apenas de fragmentos ou seu DNA.

Para conseguir catalogar e identificar todos os espécimes, porém, são necessários profissionais treinados em taxonomia e sistemática que atuem como curadores nas coleções, rotulando, anotando informações sobre local, data da coleta, nome científico, características biológicas do organismo e digitalizando com fotos e outros meios eletrônicos —enfim, cuidando dos exemplares.

"No Brasil, não há uma valorização da profissão de curador, não existe um documento oficial na universidade que preconize a curadoria, então geralmente o trabalho é feito com recursos ou iniciativa do próprio curador, muitas vezes tirando recursos de onde é possível, em um trabalho hercúleo, sem um apoio institucionalizado" lamenta Cristiana Serejo, curadora da coleção de crustáceos e diretora-adjunta de coleções do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Em setembro de 2018, o Museu Nacional foi atingido por um incêndio que devastou grande parte de suas coleções científicas, além de uma parte do prédio bicentenário (antiga residência da família Real no país). Os danos ao acervo zoológico, paleontológico e antropológico foram inestimáveis —muitos exemplares queimados no incêndio eram os chamados tipos, o indivíduo a partir do qual se descreve uma espécie, e para o qual não há um substituto.

A capacidade de armazenamento das coleções depende também do potencial de amostragem e, principalmente, de acondicionamento e manutenção das coleções. Este cálculo pode levar a valores expressivos, já que o Brasil é considerado o país mais biodiverso do planeta.

"Infelizmente, o Brasil nunca foi um país que investiu em suas coleções científicas. Os momentos de crescimento só vieram na pujança econômica, mas não há intenção em investir em ciência", afirma Rodrigues.

Os pesquisadores lamentam a falta de políticas públicas de incentivo às coleções, embora isso não seja um problema restrito ao país. Em março deste ano, profissionais do Museu de História Natural de Paris iniciaram uma campanha contra a mudança de parte do acervo do prédio histórico no coração de Paris para um novo edifício em Dijon, a cerca de 300 quilômetros da capital.

Por aqui, iniciativas dos próprios taxonomistas, curadores e profissionais que atuam na salvaguarda das coleções científicas buscam formas de incentivar tanto a digitalização dos acervos —oferecendo, assim, possibilidade de guardar parte das informações contidas em cada exemplar em plataformas digitais e acessíveis de qualquer lugar— quanto o fortalecimento do quadro de curadores e equipes envolvidos no processo curatorial.

"No Brasil, temos sempre o costume de dispor recursos depois que a tragédia acontece. Estamos lutando agora para conseguir mais recursos e seguir em frente com o Plano Nacional de Coleções Científicas, que vai ajudar a guiar as diretrizes para as coleções. É uma incógnita como será agora com o novo governo, mas vemos que, com a falta de apoio e continuidade, será um trabalho árduo", completa Serejo.

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