Descrição de chapéu

'Roma' prova que Cuarón sabe criar identificação com o insólito

Desde 'E Sua Mãe Também' (2001), cineasta oferece uma fresta muito humana das nossas emoções

Zeca Camargo

"Julio e Tenoch se esparramam em graça e bobagens, mas isso é o privilégio dos jovens; o trabalho do adulto é mergulhar nesse tempo e desenterrar, do ridículo, estilhaços de um sublime despedaçado."

Assim concluía Anthony Lane sua crítica para a revista The New Yorker do filme que projetou Alfonso Cuarón, "E Sua Mãe Também" (2001) —e é tentador pegar emprestado as palavras de Lane para dizer que, em "Roma", seu trabalho mais recente, disponível desde sexta (14) na Netflix, o diretor foi mergulhar ainda mais fundo, nas suas lembranças de infância, para juntar cacos de um passado ainda mais sublime.

São dois filmes completamente diferentes. "E Sua Mãe Também" conta a rocambolesca história de dois jovens, ainda com um pé na adolescência, numa aventura de sedução —uma nova geração mexicana experimentando os ventos de um século de transformações que acabava de nascer.

"Roma" traz uma trama bem mais reservada e intimista —um retrato de uma vida muito particular (mas, ao mesmo tempo, tão universal), a de Cleo, empregada doméstica de uma família rica de um bairro afluente na Cidade do México. O Roma que empresta o nome ao filme.

Mas em ambos os longas Cuarón oferece uma fresta muito humana das nossas emoções. Não sem provocações. A história de "Roma" fala particularmente com o espectador brasileiro.

A vida de Cleo, sutil e poderosamente interpretada pela desconhecida Yalitza Aparicio, não é muito diferente da rotina das domésticas que costuram há décadas (séculos?) a trama social do nosso país.

Já vimos, em várias casas que visitamos —ou crescemos ou trabalhamos— mulheres como ela: eficiente, docemente resignada, pragmática, sofredora.

Mas "Mãe" também fala de algo que todos que já foram adolescentes podem se conectar —a amizade dos "meninos" protagonistas, claro, mas também as garotas que são convidadas a se envolverem na trama, nem que seja pela figura da obsessão erótica de Julio e Tenoch.

Cuarón tem o dom de fazer com que o público se identifique fortemente com personagens insólitas.

Do par de amigos já citados, cuja "surpresa" no fim do roteiro estremece a noção de masculinidade de muitos, à cumplicidade entre Cleo e Adela (Nancy García), a outra empregada da casa.

Mas nessa galeria estão também uma astronauta em perigo (Sandra Bullock, no magistral "Gravidade"); um ativista salvando a espécie humana (Clive Owen, em "Filhos da Esperança"); um colégio inteiro de jovens magos no melhor filme da saga criada por J.K. Rowling, "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban".

Há ainda o deslumbre estético —incipiente já mesmo em "Mãe", essencialmente um road movie. Impossível superar o esplendor visual de "Gravidade"? "Roma" consegue isso sem efeitos especiais e se voltando às cores de onde nasceu o próprio cinema —o branco e o preto—, num rigoroso grafismo.

Longe de ser árido, ele conduz nossos olhos numa sinfonia de retas e ângulos: dos longos segundos estáticos do início, quando Cleo desaparece num quarto e deixa a tela ser dominada por uma escada, uma bicicleta e uma gaiola de passarinho, aos quatro planos (quase) mudos em que se vê a empregada e a família com olhares infinitos pelas janelas de um carrão que volta da praia.

Um "caminho de volta" de "E Sua Mãe Também"? Se Julio e Tenoch vagam pelo México procurando uma praia que eles inventaram só pra impressionar a mulher mais velha com quem queriam transar, Luisa, "Roma" praticamente se encerra com o retorno a uma praia.

Não o paraíso imaginado pelos adolescentes malandros —a tal Boca del Cielo era uma invenção deles, cenário idílico de uma fantasia sexual. Mas um espaço de comunhão e de afeto, de uma possível conexão de dois mundos tão distintos quanto o de Cleo e o da família para a qual ela trabalha.

E é entre esses dois horizontes que Cuarón segue construindo uma filmografia incomum e emocionante.

Roma

México, 2018. Direção: Alfonso Cuarón. Elenco: Yalitza Aparicio, Nancy García García, Marina de Tavira. 18 anos. Disponível na Netflix, que também distribui ingressos grátis para exibições no cinema até 26/12, em SP e Rio, pelo site www.romanetflix.com.br

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