Vereadores negros apontam racismo em hino gaúcho por seus versos sobre escravos

Cinco representantes se recusaram a ficar de pé quando canção tocou em posse da Câmara Municipal de Porto Alegre

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Porto Alegre

A ideia de que um povo é escravizado por não ter virtudes está num dos versos no hino do Rio Grande do Sul. Depois de enaltecer as “façanhas” que devem servir de “modelo a toda terra”, a composição diz que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Desde, pelo menos, a década de 1970, o movimento negro discute o racismo da letra.

Porém, o debate em torno da canção oficial voltou à tona desde que cinco vereadores de Porto Alegre, todos negros e em primeiro mandato, permaneceram sentados quando o cântico tocou durante a cerimônia de posse do Legislativo municipal, no dia 1º de janeiro. A atitude foi um protesto contra o racismo apontado por eles no hino gaúcho.

“Acho que é a primeira vez que cinco políticos se posicionam publicamente em um ambiente parlamentar pela modificação dessa estrofe. Isso é reflexo da nossa representatividade. Ter negros na politica vai fazer com que a sociedade olhe para temas que antes nunca entraram na pauta da política institucional”, diz Matheus Gomes, do PSOL, um dos vereadores que permaneceu sentado.

O Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG, se manifestou, em nota, afirmando que os versos abordam a “submissão da então província de São Pedro ao Império, no período da Revolução Farroupilha. E nada tem de discriminatória”.

A vereadora Nádia Gerhard, do DEM, defende a mesma posição do MTG. Durante a sessão, cobrou que os vereadores respeitassem os símbolos do estado. “Não tem nada de racismo, é uma forçação de barra que alguns vereadores que se dizem da bancada negra estão fazendo com um símbolo e que o MTG já escreveu uma nota dizendo que não tem conotação racista em momento algum”, disse a vereadora. Ela reforça o entendimento da entidade de que o trecho fala sobre a submissão da província à corte.

Também chamado de Guerra dos Farrapos, o conflito armado de caráter republicano durou dez anos, de 1835 a 1845. O início da guerra perdida, em 20 de setembro de 1835, é comemorado anualmente pelos gaúchos. A letra do hino foi composta antes do fim do conflito por Francisco Pinto da Fontoura.

Outras versões circulavam, mas a de Fontoura se manteve a mais popular. Por isso, cerca de cem anos depois do conflito, durante os preparativos do centenário da guerra, foi escolhida como hino oficial do estado. A lei que oficializou a música definitivamente é de 1966.

A história da participação negra na Revolução Farroupilha, porém, é ainda pouco recordada. Centenas de africanos escravizados foram incorporados à divisão dos Lanceiros Negros, do Exército gaúcho, com a promessa de ganharem liberdade ao final do conflito. Mas os negros foram traídos numa emboscada conhecida como Massacre de Porongos, na madrugada de 14 de novembro de 1844. Centenas foram assassinados. Os que escaparam foram levados à corte, no Rio de Janeiro, para servirem como escravos.

“O hino é ofensivo aos negros. Essa agressão se dá por uma questão de lógica. No contexto em que foi composto, quem eram os escravos em um país escravocrata? Os negros. Portanto, se os negros eram os escravos e o hino diz que quem não tem virtude acaba por ser escravo, a única conclusão é que aqueles escravos eram escravos porque não tinham virtude. O hino desloca completamente a escravidão do aspecto econômico e político para um aspecto moral”, diz Juremir Machado da Silva, autor de "História Regional da Infâmia", publicado pela L&PM, em 2010, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

O pesquisador investigou 15 mil documentos da época do conflito, entre eles os que apontam para uso de dinheiro da venda de escravos para bancar os custos da guerra. O professor é um dos que defendem a mudança no hino, como aconteceu recentemente na Austrália para incluir também os povos indígenas.

O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, anunciou que os versos “porque somos jovens e livres” mudaram para “porque somos um e livres”. A modificação indica um reconhecimento aos povos indígenas que já habitavam a Austrália antes da chegada de imigrantes europeus.

A retirada do trecho do hino gaúcho não seria a primeira da história, entretanto. Em 1966, em plena ditadura militar, o hino foi oficializado e dele foram extraídos os trechos que exaltavam a democracia ateniense para “assombro dos tiranos”.

“Entre nós reviva Atenas/ para assombro dos tiranos/ sejamos gregos na glória/ e na virtude, romanos", dizia a estrofe suprimida. “Uma das hipóteses é que o trecho foi excluído pela preocupação com a referência à tirania, durante a ditadura. Mas, o projeto de modificação, aprovado em 1966, é de 1961. A justificativa era a de que não fazia referência à cultura gaúcha”, diz o historiador Jocelito Zalla, professor do programa de pós-graduação em história da Universidade do Rio Grande do Sul.

Segundo Zalla, as tradições são criadas a partir de elementos selecionados e, não raras vezes, modificados. Portanto, seria natural atualizar o hino gaúcho aos tempos de hoje, contemplando a luta antirracista.

Justamente por refletir o racismo da sociedade gaúcha, o hino não deve ser alterado, reflete Luiz Carlos Tau Golin, professor do programa de pós-graduação em história da Universidade de Passo Fundo.

“Fico espantado como acham que seria possível que um estado onde o movimento político e intelectual era conduzido por senhores de escravos pudesse ter um hino que não fosse racista. O hino representa a sociedade e esse hino é muito de acordo com a sociedade sul-riograndense. Quem canta são os latifundiários, descendentes de imigrantes que se negam a ser brasileiros e que não querem se vincular com a negritude e o mundo indígena”, diz Tau Golin.

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