Violonista Rosinha de Valença foi bem mais do que um 'Baden Powell de saias'

Graças à expertise, compositora e arranjadora fluminense se tornou respeitada em um território dominado por homens

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Ana Paula Orlandi
São Paulo

Com seu violão, ela abriu espaço numa seara dominada por homens. Eclética e versátil, foi celebrada como uma das maiores instrumentistas do país e inspirou músicas de Paulinho da Viola e Hermeto Pascoal. Entre os anos 1960 e 1980, tocou e conviveu com gente como Maria Bethânia, Jards Macalé, Dona Ivone Lara, Sivuca, Ney Matogrosso e Marina Lima.

Depois de reclamar da falta de espaço na mídia e de que as gravadoras brasileiras só se preocupavam com novidades descartáveis, partiu para uma temporada na França, onde, segundo o amigo Martinho da Vila, passou a viver no final da década de 1980. De férias no Rio de Janeiro, em 1992, sofreu uma parada cardiorrespiratória que a deixou em estado vegetativo por 12 anos, até morrer em 2004.

Assim foi a trajetória da violonista, compositora e arranjadora fluminense Rosinha de Valença, que faria 80 anos de idade no dia 30 de julho.

“Ela tinha uma grande sensibilidade musical. Não apenas acompanhava, como também solava com muita personalidade”, diz Martinho, sobre a parceira com quem escreveu músicas e gravou discos como “Canta, Canta Minha Gente”, de 1974.

Além disso, o sambista produziu para a amiga o LP “Cheiro de Mato”, de 1976, em que Rosinha, que transitou sobretudo pela música instrumental, compõe, canta e evidencia a raiz caipira. “Tínhamos ideia de gravar, apenas nós dois, um disco de violão e pandeiro, mas, infelizmente, ela ficou doente”, lamenta.

A trajetória artística de Rosinha, ou Maria Rosa Canellas, começou cedo. Por volta dos 12 anos de idade ela já se apresentava ao violão na cidade natal, Valença. No início dos anos 1960, ela se mudou para o Rio de Janeiro e começou a tocar na noite carioca.

Logo depois, gravou pela hoje mítica Elenco o primeiro disco, “Apresentando Rosinha de Valença”, de 1964. No encarte do LP, o jornalista Sérgio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte Preta, escreveu que a moça tocava por uma cidade inteira. Daí o nome artístico.

A violonista Rosinha de Valença (1941-2004) durante apresentação no programa "Ponto de Encontro", em 1980 - Divulgação/TV Cultura

Naquele mesmo ano, Rosinha partiu com a banda do pianista Sérgio Mendes, que tinha Jorge Ben Jor entre os integrantes, para uma turnê nos Estados Unidos. Durante a temporada gravou, entre outros, um disco com o saxofonista americano Bud Shank e o músico brasileiro João Donato.

Logo depois, em 1966, ela se apresentou no Berlin Jazz Festival e em mais de 20 cidades europeias como integrante de um grupo formado por músicos brasileiros, como Edu Lobo e Sylvia Telles.

Fragmentos de uma dessas apresentações, registrada pela TV alemã, circulam hoje pela internet. É possível ver Rosinha interpretando músicas como “Consolação”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes. “Ela viajou bastante a trabalho, inclusive para a África, e isso influenciou sua forma de tocar”, afirma Martinho.

Rosinha flertou com vários estilos, a exemplo da bossa nova, do samba e do choro. “Ela fazia uma mistura de popular e erudito”, diz Jards Macalé, que realizou uma temporada carioca de shows com a violonista na década de 1970.

“Numa das apresentações, dividimos o palco com Clementina de Jesus, que era conterrânea dela”, lembra. Macalé e Rosinha se conheceram nos anos 1960, logo que a instrumentista chegou ao Rio. “Na época, a gente se juntava na casa do [violonista] Turíbio Santos para tocar violão com amigos como Paulinho da Viola. Aprendi muita coisa com ela, que tocava de um jeito irresistível, cheio de balanço.”

“Graças a essa expertise, ela se tornou respeitada num território até hoje dominado por homens, onde figuram nomes como Garoto, Baden Powell, Raphael Rabello e Yamandu Costa”, aponta o produtor cultural Alessandro Soares, do site Acervo Digital do Violão Brasileiro.

“Há quem ainda diga que as mulheres têm mão leve, que não conseguem tirar som pesado do violão, mas o exemplo de Rosinha joga por terra esse argumento. Ela botava para quebrar.”

Ao longo da carreira, Rosinha chegou a ser chamada de “Baden Powell de saias”. “Não deixa de ser um elogio, mas de um ponto de vista machista”, diz a violonista Marcia Taborda, professora da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Segundo ela, instrumentistas de música popular costumam ficar à sombra dos intérpretes. “E a mulher instrumentista tem duplo desafio, porque, além dessa sina, ainda enfrenta um ambiente extremamente masculino, onde a mulher parece ser aceita apenas na posição de diva”, observa.

A própria Rosinha tinha consciência de tais obstáculos. “Os homens não admitem que uma mulher possa tocar igual ou melhor que eles”, ela desabafou numa entrevista de 1987. Talvez por isso, ela tenha articulado uma rede de contatos entre artistas mulheres, na opinião da jornalista e pesquisadora Mila Burns, autora do livro “Dona Ivone Lara - Sorriso Negro”, lançado neste ano pela editora Cobogó.

Como mostra o livro, a instrumentista teve um papel importante no disco “Sorriso Negro”, de 1981, em que atuou como arranjadora, regente e violonista. A faixa que abre o LP, “A Sereia Guiomar”, traz a participação de Maria Bethânia.

“Na década de 1970, Rosinha organizou um sarau para que Bethânia conhecesse as canções de dona Ivone”, conta Burns. Foi assim que a irmã de Caetano ouviu pela primeira vez “Sonho Meu”, composta pela sambista e Délcio Carvalho.

“A faixa se tornou um sucesso e ajudou 'Álibi', o disco de Bethânia de 1978, a vender mais de 1 milhão de cópias, coisa inédita para uma mulher no país”, acrescenta. “Além disso, transformou Dona Ivone Lara em uma celebridade para além do mundo do samba. Foi mais um feito de Rosinha para a música brasileira.”

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