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William Hurt conheceu boates e bares gays de São Paulo para vencer o Oscar

Premiado com 'O Beijo da Mulher-Aranha', ator foi apresentado à cena LGBTQIA+ dos anos 1980 pelo multiartista Patricio Bisso

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São Paulo

"Quero agradecer às pessoas corajosas no Brasil que fizeram este filme", disse William Hurt ao receber o Oscar de melhor ator por "O Beijo da Mulher-Aranha", em 1986. "Saudades, Brasil", arrematou em português.

Hurt, que morreu neste domingo, aos 72 anos de idade, não era uma escolha óbvia para o papel de Molina, o prisioneiro homossexual que é um dos protagonistas do longa de Hector Babenco. Alto, louro e com só 33 anos na época das filmagens, ele não se encaixava no visual do personagem, um latino-americano afeminado já bem entrado na meia-idade.

No entanto, sua interpretação surpreendeu a todos –a começar por Babenco, que originalmente havia escalado Burt Lancaster para o papel. Além do Oscar e das críticas positivas, William Hurt ainda ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes de 1985 e o Bafta, o equivalente britânico do Oscar, no ano seguinte.

William Hurt em cena do filme 'O Beijo da Mulher-Aranha', de Hector Babenco - Divulgação

Foi a consagração absoluta de um ator que havia estreado no cinema apenas em 1980, com "Viagens Alucinantes". Depois de "O Beijo da Mulher-Aranha", Hurt ainda emplacou mais duas indicações consecutivas para o Oscar de melhor ator, por "Filhos do Silêncio", de 1986, e "Nos Bastidores da Notícia", de 1987.

No entanto, a partir da década de 1990, ele viu seu prestígio diminuir, apesar de nunca ter parado de filmar. Vários de seus longas foram mal de bilheteria. Outros não pareciam à altura de seu talento. Uma quarta indicação ao Oscar só viria em 2006, como ator coadjuvante por "Marcas da Violência".

Uma das razões para este relativo ocaso pode ter sido o envolvimento do ator com drogas, que afetou sua agitada vida pessoal. Hurt namorou algumas das atrizes com quem trabalhou, como a francesa Sandrine Bonnaire, com quem teve um filho, ou Marlee Matlin, a primeira pessoa surda a vencer um Oscar de atuação, por "Filhos do Silêncio". Em sua autobiografia, Matlin revela que sofreu até mesmo violência física de Hurt, constantemente sob o efeito de entorpecentes.

Há um extenso folclore acerca da passagem de William Hurt pelo Brasil. Hector Babenco ainda não era fluente em inglês quando rodou "O Beijo da Mulher-Aranha" e transmitia suas direções de cena ao ator por meio de um assistente. Não demorou para que ambos se desentendessem. Mas a treta não foi longe —quando Sally Field anunciou o nome de Hurt como o vencedor do Oscar de melhor ator na cerimônia de 1986, Babenco saltou de sua poltrona para tascar um beijo no rosto do ex-desafeto.

O multiartista argentino Patricio Bisso, que assinou os figurinos de "O Beijo da Mulher-Aranha" e tem um pequeno papel no filme, levou Hurt para conhecer diversas boates e bares gays de São Paulo, para que o ator, heterossexual convicto, se familiarizasse com o universo de seu personagem. Cabe dizer que a cena gay paulistana do início dos anos 1980 já era vibrante, mas muito menos visível do que é hoje. Afinal, o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar.

A mais intensa aventura vivida por Hurt no Brasil só foi revelada anos depois do lançamento de "O Beijo da Mulher-Aranha", pelo próprio ator. Segundo ele, a produção do longa pediu que ele não contasse nada na época, para não atrapalhar as filmagens e para que os produtores não fossem acusados de irresponsabilidade.

Hurt estava namorando uma brasileira, cuja identidade jamais foi descoberta. Durante uma folga, ele foi com a moça conhecer os pais dela, numa pequena cidade ao sul de São Paulo, "de ruas de terra" —o local exato tampouco foi revelado.

Ao chegarem à casa da família dela, por volta da meia-noite, Hurt e sua namorada tiveram o carro bloqueado por outro, onde estavam dois homens e duas mulheres, todos mascarados. Os bandidos fizeram o casal de refém por mais de uma hora, enquanto roubavam a casa. Um deles ainda bateu na testa do ator com um revólver, quando este respondeu em inglês. Ficou claro que eles não tinham ideia de quem era William Hurt.

William Hurt em cena do filme 'O Beijo da Mulher-Aranha' - Divulgação

Essa experiência desagradável não afetou o carinho que Hurt sentia pelo Brasil, como se viu em seu discurso de agradecimento pelo Oscar. "O Beijo da Mulher-Aranha" foi uma das primeiras coproduções internacionais a ser rodada no país, e o ator viu de perto a relativa precariedade do projeto, muito distante do padrão de Hollywood.

Durante mais de uma década, "O Beijo da Mulher-Aranha" foi o título brasileiro que mais se aproximou do Oscar. Além do prêmio a William Hurt, o longa ainda concorreu a melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro adaptado (para Leonard Schrader).

Tirando o coprotagonista Raul Julia, praticamente todo o resto do elenco e da equipe eram 100% nacionais. Não deixa de ser curioso que o único premiado com um Oscar foi justamente o americano William Hurt.

Era o começo de uma "maldição". Em 2005, "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, rendeu o Oscar de melhor canção para o uruguaio Jorge Drexler. No ano seguinte, a britânica Rachel Weisz venceu como atriz coadjuvante por "O Jardineiro Fiel", de Fernando Meirelles.

Outras indicações aconteceram recentemente, como a de melhor longa em animação para "O Menino e o Mundo", de Alê Abreu, ou a de melhor documentário para "Democracia em Vertigem", de Petra Costa. Mas, até hoje, nenhum brasileiro conquistou um Oscar.

A não ser que consideremos que William Hurt era meio brasileiro. Provavelmente, o ator não iria se importar.

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