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Danilo Thomaz

'Pantanal' em alta mostra como o público cansou do identitarismo

Depois do fracasso de 'Um Lugar ao Sol', de viés progressista, novela traz debates sem se apoiar na lacração

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Em sua chegada ao Pantanal, Jove, cheio de dedos, diz ao pai peão que não come carne. Zé Leôncio, que armou uma festança para receber o filho, afirma que a carne é de boi "pantaneiro". O garoto, que é vegano, agradece, mas diz que não comer carne é "uma questão de princípios". O pai fica desnorteado: "Que princípio é esse?". Zé Leôncio fica irritado, afinal, seus bois são muito bem tratados.

A cena, exibida recentemente no remake de "Pantanal", não buscava estabelecer um marco entre o pai "atrasado" e predador da natureza, vivido por Marcos Palmeira, e o filho "bonzinho" e preocupado com o meio ambiente, interpretado por Jesuíta Barbosa. Mas de explorar as nuances que podem existir a partir de um pai e um filho nascidos e criados em ambientes distintos e trazer o humano para a tela.

José Leôncio (Marcos Palmeira) recebe Jove (Jesuíta Barbosa) na novela 'Pantanal', da Globo - João Miguel Júnior 2022/Globo

Num país onde a produção cultural tornou-se um campo de batalha, dentro e fora da política institucional, chega a ser um ato de coragem por parte do autor, Bruno Luperi, usar tal temática para metaforizar o conflito entre pai e filho.

A audiência de "Pantanal", em comparação com sua antecessora, "Um Lugar ao Sol", tem reagido de maneira positiva. Enquanto a nova versão da trama de Benedito Ruy Barbosa já tem superado a marca dos 30 pontos, sua antecessora terminou com uma média de apenas 22 pontos de audiência, a pior do horário.

Considerada até pelo menos a sua metade como uma boa novela, "Um Lugar ao Sol" tinha um claro viés progressista, que a conectava mais com as massas urbanas "descoladas" do que com a maior parte da população. Isso tudo embora a novela evitasse discursos e buscasse matizar suas personagens.

Seus temas iam do homem mais velho cancelado por transar com uma garota de 18 anos ao casamento entre duas mulheres, que substitui o tradicional casamento homem e mulher no final; da "gordofobia" ao "etarismo"; da apropriação cultural à abordagem moral do racismo.

A maior parte dos temas da novela poderia estar entre os assuntos mais comentados no Twitter em um dia de ira ou gozo progressista. Mas não fala com a maior parte da população. Pelo menos não na forma como são abordados. Na realidade e na ficção.

"Pantanal", por sua vez, em vez da fragmentação, busca a universalidade. O peão, a prostituta, a madame, o playboy valem mais pelo que são como pessoas do que pelo que representam como tipos sociais.

Mas, afinal, não é disso que trata a ficção? Do humano? De explorar a complexidade até o limite e nos fazer conhecer melhor a nós mesmos e o mundo em que vivemos?

Diz a tradição ocidental que sim. Mas, recentemente, o Brasil, com algumas décadas de atraso, resolveu traduzir para o português daqui o identitarismo.

Para não haver confusão, uma pequena digressão: o chamado identitarismo nasce dos movimentos de minorias políticas dos Estados Unidos nos anos 1960. Ali, buscava-se, ao mesmo tempo, a conquista de direitos de negros, mulheres e LGBTQIA+ e a superação do capitalismo.

A partir da década de 1980, com a hegemonia do chamado neoliberalismo, surge o identitarismo, que passa a buscar menos a inclusão e mais a representatividade. Troca-se o "nós" pelo "eu". Não por acaso o cientista político Mark Lilla, autor de "O Progressista de Ontem e o do Amanhã", o chama de "reaganismo para as esquerdas", em referência ao presidente republicano que transformou os EUA a partir de 1980.

Começou com uma demanda justa das minorias, por mais espaço no campo cultural, que não viria se não fosse no grito. O espaço aumentou. Mas os gritos continuaram. Atacando a tudo e a todos que não seguissem a uma espécie de manual dos modos e valores identitários.

A produção cultural brasileira começou a ficar dominada pelo identitarismo enquanto ideologia. Com isso não quero dizer que se deva diminuir, por suposto, o espaço a mulheres, negros e LGBTQIA+ —os pobres ainda não chegaram lá. Mas será que todas, todos e, vá lá, "todes", pensam a mesma coisa?

Por que tantas obras de autoras negras americanas enquanto a de um autor da importância do geógrafo Milton Santos, reconhecido internacionalmente, segue esquecida? Por que se fala tanto do racismo do ponto de vista moral e tão pouco do ponto de vista econômico? Será que a principal agenda do feminismo brasileiro é a "masculinidade tóxica"? Será que as ações afirmativas e focalizadas são a única saída? Será que o "artivismo" é assim tão politizado?

Um grande exemplo de como o discurso ideológico do identitarismo passou a preponderar até sobre a questão da pluralidade se deu em 2021: o centenário da morte de João do Rio, o mais versátil escritor brasileiro do período da Primeira República, inspirou um único (re)lançamento.

Jornalista, dramaturgo, cronista, romancista, contista, João do Rio era negro, gay —e gordo. Subia morros, criticava as elites, falava das religiões afro e até tratou da homossexualidade. Mas era um provocador, e não um moralista.

Os relatos de bastidores não são dos melhores. Já ouvi até casos de preparadores que apontam machismo mesmo em livro passado na ditadura brasileira e narrado por um homem. Aliás, toda visão de um homem hétero e branco é, em si, machista?

Alguns casos vieram a público. Como a escolha do cineasta José Padilha para a série sobre a vida da vereadora Marielle Franco, no Globoplay.

E, recentemente, a forma como o jornalista Audálio Dantas, já morto, foi exposto por causa de seus conflitos com a escritora Carolina Maria de Jesus e as correções gramaticais que fez em seus textos antes da publicação. Motivo de celeuma, agora que Carolina vem sendo comparada até mesmo com Guimarães Rosa.

Nascido no interior de Alagoas e autodidata, Audálio foi convertido em homem branco opressor por isso, e também pela edição —sim— dos diários de Carolina. Outro "crime" foi o de ter insistido para que ela seguisse no gênero diário.

Além de ter descoberto Carolina e ter sido responsável pela publicação de "Quarto de Despejo" (por anos e anos disponível só em sebos), Audálio foi uma figura fundamental nos protestos contra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura militar e na organização do funeral ecumênico em sua homenagem. A cerimônia é um dos marcos da decadência do regime. Mas o que importa se Audálio não tem "lugar de fala"?

E já que o assunto é esse, eu me pergunto o quão ignorante seríamos sobre as elites brasileiras se Machado de Assis tivesse se limitado a falar da situação do negro. É provável que o autor nem sequer tivesse se tornado um inovador da linguagem do romance sem esse exercício de alteridade.

Afinal, sua grande inovação na forma vem justamente quando a "pena da galhofa" é molhada na "tinta da melancolia" do aristocrata Brás Cubas. Já disse Elena Ferrante: "Escrever —e não apenas ficção— é sempre uma apropriação indevida".

E mais uma vez me pergunto: será que o público quer sentar para apreciar uma obra e ser acusado de racista, machista, homofóbico? Cabe a quem ocupa um lugar de autoria esse "altar imaginário" (pego aqui a imagem do cancelável Honoré de Balzac) de guardião da moral?

A audiência de "Pantanal", como já dito, tem dado sua resposta.

Assim como outros fenômenos recentes, como o romance "Tudo É Rio", da mineira Carla Madeira. Um livro que tem como eixo um triângulo amoroso em torno de uma prostituta e —alerta de spoiler— até perdão por violência doméstica. Não se trata, claro, de um elogio a isso. É a vida posta em suas contradições. E o leitor também —o livro, de um jeito bem mineiro, vendeu 40 mil exemplares só em 2021.

Ou mesmo a atriz trans Nany People, que enche os teatros aonde quer que vá, e já declarou: "Não sou Maria vai com todes."

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