Escritos de Elza Soares no final da vida mostram salto do esquecimento até a glória

No aniversário de um ano de sua morte, anotações revelam como ela orquestrou grande volta por cima nos últimos discos

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A cantora Elza Soares em entrevista no hotel Fasano, em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

Rio de Janeiro

"O que você quer, 2014?", Elza Soares perguntava num dos cadernos de anotações que ela deixou com a neta, Vanessa Soares, e com o empresário, Pedro Loureiro, antes de morrer, há exatamente um ano. "Cheguei a conclusão de que tenho capacidade e muita moral", ela anotou, na mesma página, antes de repetir a palavra "capacidade" e acrescentar outra, "suficiente".

Era provavelmente a virada de 2013 para 2014, quando Elza vivia um período de esquecimento na carreira, antes de ressurgir para ser celebrada como uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos em seus últimos anos de vida. Em seus cadernos dessa época, inéditos, ela escreveu sobre injustiça, resiliência, esperança e demonstrou uma vontade de viver e produzir ainda mais.

Com algumas exceções, Elza não tinha o costume de escrever muito, e a maioria das páginas tem frases soltas, anotações simples, números de contatos, ideias, expressões em inglês e, principalmente, muitos aforismos.

Um dos poucos textos mais longos é a transcrição da letra de "Simples Saudade", de Gonzaguinha, que diz "não é a doença que acaba com a gente/ deixando esmagada a vida no chão/ é a estranha saudade do que ainda não vivi".

Até àquela altura, Elza ainda não tinha lançado um álbum inteiro de músicas inéditas. Mas, de alguma forma, sabia que algo estava reservado para ela. Há uma anotação em que escreve sobre o desejo de "construir um plano em conjunto" com um antigo empresário, Gonzaga, numa página com ideias para o ano de 2015 —quando saiu o álbum "A Mulher do Fim do Mundo" e sua trajetória se transformou.

Na mesma página, Elza escreveu sobre "trabalhar o nome" na imprensa, e deixou jogado o sobrenome do produtor Guilherme Kastrup. Era ele quem, desde meados de 2013, discutia com a cantora a possibilidade de gravar um álbum dela com uma turma de músicos de São Paulo, entre eles Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Marcelo Cabral e Celso Sim, acostumados a fazer um samba torto com guitarras.

Na época, Elza fazia shows em homenagem ao sambista Ataulfo Alves, participava de apresentações de José Miguel Wisnik e era convidada para projetos em espaços como os do Sesc. Se mantinha ativa, mas tocando para públicos mais envelhecidos, fãs de sambas antigos, em plateias diminutas, longe da mídia, dos grandes palcos e dos festivais —espaços que ela passaria a ocupar anos depois.

"Ela começou a ficar com a mobilidade prejudicada, não estava conseguindo ficar totalmente de pé", diz Kastrup. "A gente se preocupava com a saúde dela, mas era uma mulher de uma força extraordinária. Havia uma carga de dificuldade nessa época toda, mas quando ela abria a boca para cantar, saía aquele poderio todo."

O disco "A Mulher do Fim do Mundo", de 2015, foi inicialmente pensado como um trabalho de sambas clássicos com arranjos experimentais de guitarra. Mas o álbum acabou feito com músicas inéditas, compostas especificamente para a cantora, sempre partindo do samba, mas expandindo a sonoridade com uma abordagem vanguardista.

"Era um projeto ousado", diz Kastrup. "É todo feito em contrapontos, com muita dissonância, pouco apoio harmônico, muito barulho e ruído. Muitas artistas, inclusive com visões vanguardistas, iriam se assustar, dizer que não dá —seria a reação da maioria das cantoras que conheço. A reação dela foi dizer ‘vou ter que estudar para cantar em cima disso’. Todo mundo chorou, porque ela teve uma compreensão muito grande do quanto aquilo era moderno."

Paralelamente, em seu caderno, Elza lidava com os próprios demônios. "Eu fui oprimida, humilhada, ferida na alma e sobrevivi. Fui julgada, prejudicada, caluniada e em silêncio me mantive", ela escreveu.

Em outra frase, ela afirmou que estava fazendo "um esforço enorme para não guardar raiva, rancor ou assemelhados de quem quer que seja". Um entre vários aforismos parece resumir esse sentimento da artista —"seja como uma flor que ainda dá sua fragrância para a mão que a esmaga".

Com uma carreira que começou ainda nos anos 1950, Elza viveu altos e baixos e passou por situações extremas de sofrimento. Desde cedo, conviveu com a fome, foi mãe aos 13 e viu quatro filhos morrerem ao longo da vida.

Foi tachada de "destruidora de lares" depois que Garrincha, ídolo do futebol nacional nos anos 1960, terminou seu casamento para ficar com ela. Ainda foi vista como destruidora do próprio jogador, que se acabava na bebida enquanto ela tentava, sem sucesso, salvar o marido.

Elza chegou a prometer dar um filho a Garrincha, que batia nela e até então só havia sido pai de mulheres, se ele parasse de beber. Eles de fato tiveram Garrinchinha, que morreu aos nove anos de idade em um acidente, em 1986, só três anos depois da morte do pai, este antes de fazer 50 anos.

Às dores da vida pessoal, se somaram as frustrações profissionais. Tida como a rainha do samba, Elza recusava a coroa, porque se considerava uma cantora completa, que podia passear por qualquer gênero. E tudo isso atravessado pelo racismo à brasileira, do qual a cantora foi uma das maiores vítimas e ao qual ela se referia como o pior do mundo.

Em seus cadernos, é como se ela dialogasse com tudo isso em algum nível. "O fato de ter sido casada, submissão", diz uma frase solta. Em outro momento, reconhece a origem racista da palavra "mulata", e diz que há muitos homens "frouxos e vagabundos".

Mas para cada desabafo, há uma mensagem de esperança. Como quando ela escreve que "todos sabemos que a música é o alimento da alma" e que, portanto, "é preciso acreditar".

considerada a cantora do milênio, ela estava trabalhando, mas invisibilizada, como se tivesse sido esquecida pelo país pelo qual era apaixonada. Mesmo com orçamento curto e poucas pretensões, "A Mulher do Fim do Mundo" trouxe seu nome de volta.

O álbum foi elogiado pela imprensa dentro e fora do Brasil e empilhou prêmios. Elza passou a se apresentar para multidões, como na Virada Cultural, em São Paulo, e nas duas vezes em que esteve no Rock in Rio, entre várias outras ocasiões.

"Não teve ajuda de gravadora, de mídia, de nada", diz Kastrup. "Houve uma conexão com o momento social, político e histórico do Brasil. Elza se tornou uma voz num momento em que estava crescendo o movimento de opressão dos grupos que ela representa —mulheres, negros, LGBTs. A potência desse trabalho se deve a essa convergência, do poder da voz dela, da história de vida que ela tem, e do momento político, de pessoas que se sentem representadas por ela. Não dava para prever."

A partir do fim de 2015, meses depois do lançamento do disco, Elza passou a ter Pedro Loureiro como empresário. Seus primeiros contatos com contratantes foram decepcionantes. "Nosso primeiro show foi numa cidadezinha muito pequena, com só dois músicos. Não vou contar o cachê, porque era absurdo, mas era o que dava para fazer."

Loureiro diz que ouviu de contratantes, promotores de festivais e de programas de TV que o tempo dela já havia passado. "As pessoas me perguntavam se ela estava viva."

O público de Elza rejuvenesceu, lembra Kastrup. "O primeiro festival que a gente fez foi o Psicodália [em Santa Catarina], em fevereiro de 2016. Era um show para uma molecada, uns 5.000, de 20 a 25 anos. Quando a gente estava passando o som, o povo já cantava as músicas. Foi um show de rock and roll, a casa caindo. Ali a gente sentiu que a coisa tinha se transformado."

Elza lançou outros dois álbuns de estúdio, "Deus é Mulher", em 2017, e "Planeta Fome", em 2019, além de deixar outro pronto, que será lançado este ano, coroando o período que marcou seu momento de maior evidência provavelmente desde os anos 1970. Só fez um show solo no Theatro Municipal de São Paulo, um sonho seu, dois dias antes de morrer.

Entre comentários sobre a atuação de Cláudia Ohana na novela "Joia Rara" ou a derrota do Brasil para a Alemanha, na Copa do Mundo de 2014, os cadernos de Elza revelam a força mental de quem resistiu a injustiças de todos os tipos até os 91 anos, a tempo de protagonizar uma das maiores voltas por cima da nossa música.

Como diz a letra de "Carta de Amor", de Maria Bethânia e Paulo Cesar Pinheiro, da qual Elza reproduziu um trecho em seu caderno, "sou como a haste fina/ que qualquer brisa verga/ mas nenhuma espada corta".

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