Elza Soares prometeu e cumpriu cantar até o fim

Cantora usou 'voz do milênio' para alimentar seus filhos, amores e vontades

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”

Elza Soares, que morreu cantando, cantou para viver. E que ninguém veja nisso poesia. Elza, soberana na voz e na luz, nunca foi boa de metáforas.

Cantou primeiro em 1953, no programa de rádio de Ary Barroso, para comprar comida para seus filhos. Depois cantou para pagar a condução e o tafetá dos vestidos nas apresentações da Orquestra de Bailes Garan, quando o diretor de um clube não implicava com uma cantora negra entretendo seus sócios.

Depois cantou prisioneira de um golpe em Buenos Aires, para mandar brinquedos para seus filhos no Rio, e encontrou na parceria com Astor Piazzolla uma maneira de sublimar a morte do pai.

Elza cantou na boate Texas para ver se conseguia gravar mais um disco, no tempo em que um sucesso como "Se Acaso Você Chegasse" não era garantia de uma carreira. Cantou para ganhar um elogio do próprio Lupicínio Rodrigues, autor da música, e ver o futuro se abrir.

Cantou para seduzir Mané Garrincha numa feijoada na sua casa na Urca e depois cantou para seduzir toda a seleção do Brasil no Chile, em 1962, e quem sabe até a torcida brasileira, que jogava contra o casal.

Daí cantou para sustentar o Mané, todos os filhos do casal, cantava toda vez que a conta ficava vermelha. Cantou para ver o golpe de 64, para não ouvir os tiros na sua casa antes de se mudar para a Itália, cantou para alegrar as partidas de futebol em Roma com o marido e Chico Buarque.

Cantou para provar que era melhor que uma certa cantora em que a gravadora resolveu investir nos anos 70, no seu retorno ao Brasil. Cantou careca para pagar a promessa feita na esperança de Garrincha largar a bebida, cantou para Garrinchinha não ver seu pai chegar bêbado na maternidade dois dias depois do seu nascimento.

Cantou "Língua" para lembrar que ainda podia usar a sua. Cantou para não enlouquecer quando perdeu seu filho com Mané. Cantou com Cazuza e Lobão, para lembrar às pessoas que ela ainda estava ali.

Emudeceu por longos anos e, quando abria a boca, nem ela se reconhecia. Até poder cantar de novo, aclamada internacionalmente na virada do milênio como uma das vozes do século 20. Aí cantou para provar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, até que pôde finalmente conjugar o verbo desse refrão no passado.

Cantou para se encaixar nos beats de um DJ e depois no seu coração, décadas mais novo que o dela. Cantou para driblar os remédios que escondiam o fracasso de sua última aventura amorosa, até que, finalmente, cantou para cumprir a profecia de que iria cantar até o fim.

Como sempre quis.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.