Museu do Ipiranga estreia espaço com exposição sobre 200 anos de Independência

Mostra revê idealizações em torno do Sete de Setembro em nova sala de 900 metros quadrados construída durante reforma

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São Paulo

Uma das maiores duplas caipiras da história da música brasileira, Tonico e Tinoco gravaram o "Hino do Sesquicentenário", composição de Miguel Gustavo, em 1972. Com a garganta e a viola, exaltavam os 150 anos do grito do Ipiranga: "Potência de amor e paz/ Esse Brasil faz coisas/ Que ninguém imagina que faz".

Mais adiante, os irmãos cantavam: "Na mistura de raças/ Na esperança que uniu/ O imenso continente/ Nossa gente, Brasil".

Vista geral da exposição 'Memórias da Independência', primeira mostra temporária do Museu do Ipiranga após a reforma - Eduardo Knapp/Folhapress

Sob o governo do general Emílio Médici, fase de repressão implacável contra qualquer voz que incomodasse a ditadura militar, a dupla enaltecia o país "de amor e paz".

A capa do disco com o hino é um dos 130 itens presentes em "Memórias da Independência", a primeira exposição temporária do Museu do Ipiranga depois da reabertura. As mostras de longa permanência passaram a ser exibidas ao público em setembro do ano passado, quando a instituição voltou a funcionar.

Com entrada gratuita e duração de apenas dois meses, a nova exposição foi montada na maior sala do museu, com 900 metros quadrados, tamanho equivalente ao de uma quadra esportiva. Fica na área ampliada, o chamado piso jardim, à direita de quem entra na instituição.

O álbum de Tonico e Tinoco integra um percurso de 200 anos de construções da memória em torno da Independência. Ou seja, não se trata de uma mostra a respeito da emancipação do Brasil em relação a Portugal, e sim sobre como o país refletiu acerca daquele fato histórico e, principalmente, como o idealizou por meio de pinturas, gravuras, esculturas, fotografias, filmes, músicas e outros meios.

O eixo principal começa em 1822, segue para o cinquentenário, passa pela marca dos cem anos, lembra o sesquicentenário até chegar ao quinto módulo, dedicado aos 200 anos, celebrados ou discutidos no ano passado.

"Queremos colocar em questão a ideia de sempre associar a Independência ao museu, ao Ipiranga, a São Paulo. O que aconteceu aqui foi um grito e tão somente. E tchau", diz, em tom bem-humorado, Paulo César Garcez Marins, que divide a curadoria com Maria Aparecida de Menezes Borrego e Jorge Pimentel Cintra, todos do corpo docente do museu. Há ainda curadores-adjuntos.

"O processo de Independência é complexo e só será concluído em meados de 1823, com a expulsão dos portugueses das províncias do que hoje chamamos de Norte e Nordeste. Justamente por ter sido complexo, esse processo será alvo de uma disputa simbólica entre as capitais [São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador]", afirma o historiador.

Em cada um desses cinco espaços, há a visão oficial, ligada direta ou indiretamente ao pensamento dos líderes políticos da época, e o que Garcez Marins chama de "recepção social desses esforços memoriais". E assim, cria-se um contraponto.

Um exemplo é o segundo módulo, dedicado a 1872. Há alguns desenhos preparatórios para "Independência ou Morte", pintura ufanista de Pedro Américo em exibição no salão nobre, três andares acima desta sala de exposições temporárias. São grafites sobre papel que, devido à fragilidade, raramente são apresentados ao público.

Logo ao lado, aparecem caricaturas mordazes do ítalo-brasileiro Angelo Agostini, que ridiculariza nomes como dom Pedro 1º e José Bonifácio.

Paulo César Garcez Marins, um dos curadores da nova exposição do museu do Ipiranga, à frente da reprodução da tela 'Proclamação da Independência', de autoria do francês François-René Moreaux - Eduardo Knapp/Folhapress

É também neste espaço que está o majestoso carro alegórico da Cabocla, figura feminina que simboliza a participação popular nas lutas pela Independência na Bahia. Ela e o Caboclo desfilam todo 2 de julho em Salvador desde 1824 —nesta data, um ano antes, os portugueses tinham sido definitivamente expulsos da província.

"O 2 de julho é a grande festa da Independência. Não há nada em São Paulo ou no Rio que se compare ao que acontece em Salvador. E a gente teve a sorte de conseguir trazer o carro da Cabocla, que sai muito raramente de Salvador", diz Garcez Marins.

No módulo voltado ao centenário, um outro tipo de contraste se revela. De um lado, a exposição internacional no Rio, com dezenas de delegações estrangeiras e festas que receberam multidões. De outro, o fiasco de São Paulo —o monumento à Independência só foi entregue completo em 1923, assim como o jardim francês e a avenida Dom Pedro, todos no bairro do Ipiranga.

A ditadura militar soube usar os 150 anos para se promover, recorrendo ao futebol, à música e ao cinema. Sorte do Brasil ter tido O Pasquim, tabloide que zombava da devoção exacerbada dos generais ao nacionalismo. O ano de 1972 teria sido ainda mais sinistro sem os personagens de Henfil e Jaguar, que ocupam uma das paredes da exposição.

Cada módulo tem uma projeção. A primeira reconstitui o caminho feito por dom Pedro 1º e sua comitiva de Santos a São Paulo no dia 7 de setembro de 1822, fruto de uma longa pesquisa de Cintra, um dos curadores.

Além desse eixo principal, a exposição apresenta o núcleo "Outras Independências", que aborda movimentos do século 19 em busca de autonomia para determinadas regiões, tanto em relação a Lisboa quanto ao Rio. São os casos da Revolução Pernambucana, de 1817; da Confederação do Equador, em 1824, em estados do Nordeste como Pernambuco, Ceará, Paraíba e Piauí; e a Revolução Farroupilha, que se estendeu de 1835 a 1845 no Rio Grande do Sul.

É a chance de ver pinturas históricas como "A Execução de Frei Caneca" (1924), óleo sobre tela de Murillo la Greca.

Por fim, uma curiosidade —quando preparava as celebrações para o centenário da Independência, Affonso de Taunay, diretor do Museu do Ipiranga, encomendou ao pintor italiano Niccola Petrilli um retrato de Domingos José Martins, considerado um dos mártires da Revolução Pernambucana.

Detalhe do retrato de Domingos José Martins de autoria do artista italiano Niccola Petrilli na exposição 'Memorias da Independência' - Eduardo Knapp/Folhapress

O problema é que Taunay detestou a obra entregue por Petrilli e só a expôs porque não haveria tempo de fazer outra. Três anos depois, no entanto, o diretor substituiu a tela do italiano por um outro retrato de Martins, esse de autoria de Oscar Pereira da Silva.

A pintura de Petrilli amargou décadas no acervo técnico do museu e volta, enfim, a ser exposta em "Memórias da Independência". O visitante poderá chegar à sua própria conclusão: Taunay tinha razão ao rejeitar o retrato?

Memórias da Independência

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