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Festival de Salzburgo respira tradição com obras de Ligeti e Martinu

Evento, olimpo da música erudita, volta a experimentar fusão com o cinema e tem participação surpresa da rainha da Suécia

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João Marcos Copertino Pereira
Salzburgo

Todos os anos, em agosto, o Festival de Salzburgo faz da cidadezinha alpina na Áustria a capital mundial da música clássica. Fundado em 1920, o festival tem como missão ser o suprassumo não só da música erudita, mas também do teatro. Enquanto a dramaturgia fica mais restrita ao mundo germânico, as melopeias reinam absolutas.

O festival é um Olimpo concertante. Em um mesmo dia, se pode ouvir a inconfundível voz de Cecilia Bartoli, ver os dedos ágeis de Mitsuko Uchida ou Girgory Sokolov e fechar a noite num bar com Daniil Trifonov. Todos seriam ilustres desconhecidos em outras metrópoles, mas aqui são maiores que Beyoncé e Jay-Z.

Festival de Salzburgo
Andrey Nemzer, Dennis Orellana, Nicholas Newton, Jeanine De Bique e Julian Prégardien em 'Indian Queen', no Festival de Salzburgo - Marco Borreli/Divulgação

Nos concertos, há uma atmosfera que respira tradição. Os melómanos mais xiitas se vestem com trajes típicos do Tirol —os dirndl e lederhosen— e sabem exatamente o que querem ouvir, Mozart —salzburguense da gema—, Brahms, Schubert, Verdi et cetera. Markus Hinterhäuser, o diretor artístico do festival, faz seus pequenos acenos à inovação.

Neste ano, desenterram a ópera "A Paixão Grega" de Bohuslav Martinu e houve uma série de concertos em homenagem a György Ligeti. As duas apostas são extremamente seguras. Enquanto Martinu morreu meio século atrás e sua música não é lá desafiadora aos seus ouvintes; Ligeti, vanguardista de fato, é figura mais do que consolidada no repertório —seu "Concerto para Violino" foi um dos destaques desta temporada da Osesp, e suas peças para piano são trilha sonora de filme de Kubrick.

O tradicionalismo de Salzburgo se expande a muitos de seus músicos. A principal estrela do festival, a Orquestra Filarmônica de Viena só começou a aceitar mulheres em 1997. Mesmo hoje, se pena para ver mais de dez mulheres tocando num mar de homens.

Mais que um problema de representatividade, tal teimosa se reflete na sonoridade do grupo. Numa sombria produção de "As Bodas de Fígaro", a orquestra foi tinhosa e tocou tudo alto demais, desnecessariamente cobrindo as vozes dos cantores. Nem mesmo o charmosíssimo regente Raphaël Pichon, especializado em música barroca, conseguiu domar o grupo.

Por falar em tradição, neste ano tivemos duas óperas de Verdi com enredo inspirado em Shakespeare. As montagens tentaram abordar o palco lírico pelas lentes de cinema. "Macbeth", dirigida por Krzysztof Warlikowski, é uma tentativa de levar a peça escocesa ao encontro dos filmes míticos de Pier Paolo Pasolini —especificamente "O Evangelho de São Mateus", de 1964, e "Édipo Rei", de 1967. "Falstaff", nas mãos de Christoph Marthaler, faz uma leitura feminista do esquecido "Falstaff - O Toque da Meia Noite", filme de 1965 dirigido por Orson Welles.

Os resultados são, no melhor dos casos, medianos. A complexa relação entre cinema e ópera ainda está por ser entendida. Ano que vem, talvez?

A importância do festival é tanta que aqui músicos novatos podem alcançar os píncaros da glória do estrelato. Anna Netrebko —hoje devidamente cancelada— fez história com sua "Traviata" em 2005 —em três semanas passou de talento promissor para superestrela. A bola da vez parece ser a soprano Asmik Grigorian.

Realmente, o frisson em torno da prima donna é tão grande quanto sua voz, mas há ressalvas. Ela tem talento e carisma, mas falta aquele capricho que singularizam as grandes divas. Às vezes ela canta tudo muito forte e sua pronúncia do italiano —língua fundamental para a ópera— é tão compreensível quanto javanês ou sânscrito.

A grande estrela desta edição, entrementes, foi a música de câmara. Um recital de canções com Renée Fleming e Evgeny Kissin ganhou corações pela sua sublimidade. Pierre-Laurent Aimard trouxe um lirismo singular à música de Ligeti e Igor Levitt conseguiu levantar defuntos com os "Momentos Musicais" de Schubert.

O mais exuberante concerto do festival foi comandado por Teodor Currentzis. O grego dirigiu uma excelente performance da ópera "Indian Queen", de Henry Purcell. A orquestra Utopia —grupo novo, agora sem financiamento de Vladimir Putin— tocou tudo pianinho e pianíssimo; mesmo assim, todos os instrumentos se fizeram ouvir nas suas mínimas articulações.

Foi um passeio pelo jardim das delícias da música barroca. A soprano Jeanine De Bique provou ter a voz mais bonita da atualidade. Ela tem um timbre extremamente delicado e nas certas condições de temperatura e pressão é de uma beleza imbatível.

Em Salzburgo é assim, a magia da música sempre acontece. O problema é que, para não ter de vender um rim, o fã médio tem de planejar com muita antecedência. Os ingressos mais baratos —€ 10 em pé, € 35 sentado— se esgotam até seis meses antes do festival começar.

Mas o que é um pouco de planejamento para ouvir Cecilia Bartoli cantando ao lado da rainha Silvia da Suécia?

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