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Gustavo Alonso

João Carreiro, gigante, foi pouco conhecido porque criticou o novo sertanejo

Cantor morto nesta quarta foi anacrônico ao defender a tradição caipira e ao bancar discursos que eram politicamente incorretos

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Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'

Recife

Morto subitamente nesta quarta-feira (3), o violeiro João Carreiro faz parte daquele rol de artistas bastante admirados por todo fã de música sertaneja, mas sobre o qual o público fora do gênero raramente ouviu falar. Por isso a comoção em torno de sua morte pode gerar certo descompasso entre fãs e quem não o conhecia. Mas não se engane, João Carreiro era um dos grandes.

O cantor João Carreiro - Reprodução

Infância

João Sérgio Batista Corrêa Filho nasceu em 24 de novembro de 1982 em Cuiabá, capital do Mato Grosso. Ganhou o primeiro violão do pai e a primeira viola caipira do avô. Cedo percebeu o talento nato para o instrumento, mas seu gosto era diferente do avô, a quem queria agradar.

Seu avô era fã de cantores de timbres agudos como Tonico e Tinoco, Zico e Zeca e Abel e Caim. Já Carreiro era fã de cantores que cantavam grosso, como Ronaldo Viola, João Mulato, Zé Mulato, Peão Carreiro e Praense e, sobretudo, Tião Carreiro.

Inspiração em Tião Carreiro e voz grave

Reformulador da tradição, criador do pagode de viola, Tião Carreiro tornou-se ao longo dos anos um dos pais da tradição caipira. No entanto, quando Tião morreu, em 1993, não houve grandes celebrações em torno do seu legado.

Nos anos 1990, imperavam as duplas de canto agudo e estridente e a forma de Tião cantar andava meio esquecida. Foi a geração universitária que resgatou o canto grave e empostado do violeiro, assim como seu instrumento.

A adoração por seu mestre era tanta que, além de adotar o nome artístico em homenagem, Carreiro até rejeitava todos aqueles que cantavam agudos. Em entrevista ao jornalista André Piunti, no YouTube, contou: "sempre fui até meio bitolado na viola e nesse cantar grave. Eu até teimei com o José Rico, porque era um estilo que não me agradava". José Rico cantava agudo.

Carreiro cantou em três duplas. Na terceira, conseguiu o sucesso ao lado de Hilton Cesar Serafim da Silva, que adotou o pseudônimo de Capataz. A dupla seguiu o roteiro da geração universitária.

O primeiro se formou em administração, e o segundo, em direito. Começaram em 2003 com um disco semi-amador. Em 2006, se engajaram na estética típica da época e lançaram o CD "Acústico".

Mas o sucesso nacional veio mesmo com o disco homônimo da dupla lançado em 2009, com as músicas "Bruto, Rústico e Sistemático", trilha sonora da novela "Paraíso", e "Xique Bacanizado", tema da novela "Araguaia", ambas da Globo. Em 2010, "Xique Bacanizado - Ao Vivo" trouxe outro sucesso, "É pra Cabá".

Precursor do sertanejo bruto

Carreiro, com seu canto grave e apologia da tradição, ajudou a forjar o sertanejo bruto, um subgênero que, ao cantar a tradição rural mais autêntica da música caipira, flertava com o reacionarismo no campo dos costumes. Junto da viola e da apologia da terra, ele cantava o homem tradicional que rejeitava a modernidade, as mudanças nas relações sociais e as metamorfoses nos papéis de gênero e sexuais.

Já na época em que foi lançada, "Bruto, Rústico e Sistemático" foi muito criticada. A canção propunha um "corretivo" à mulher que fazia topless, criticava o jovem de brinco na orelha e tatuagens no corpo e, para finalizar, repudiava os homossexuais.

"Sistema que fui criado/ ver dois homem abraçado pra mim era confusão/ mulher com mulher beijando/ dois homens se acariciando, meu Deus, que decepção!/ mas neste mundo moderno, não tem errado e nem certo,/ achar ruim é preconceito/ mas não fujo à minha essência/ pra mim isso é indecência/ e ninguém vai mudar meu jeito."

O sucesso levou a dupla ao programa "Viola, Minha Viola" , da tradicionalista Inezita Barroso, onde cantaram a canção e foram muito aplaudidos em setembro de 2011. Nesta oportunidade, Carreiro disse: "nós só temos a carenagem nova, a cabeça é do povo lá de trás mesmo!".

Discurso politicamente incorreto

O cantor vivia um paradoxo subjetivo. Ele defendia a tradição da música caipira, mas surgiu artisticamente em outro tempo. Começou a carreira no século 21, época em que os sertanejos abraçaram até as mulheres empoderadas do feminejo. Tornou-se assim um peixe fora d'água, uma voz dissonante.

Talvez por sua vontade de bancar discursos fora do politicamente correto e por sua grande competência técnica como violeiro e cantor, passou a ser muito admirado no meio sertanejo.

Ao lado dos conflitos na questão dos costumes, João vivia um dilema estético. Ele compunha na tradicional viola, mas vivia num meio cada vez mais comercial e movido pelas redes sociais. Em "Não Toca em Minha Vitrola", João cantou o seu drama existencial.

"Esquecendo da cultura/ tão mudando a postura/ só pra fugir do lugar/ é o sertanejo moderno/ brinco de argola e terno/ só canta comercial/ modinha sem fundamento/ deixam no esquecimento/ toda nossa tradição/ não se fala em boiada/ é só moda bagunçada/ e o assunto é traição."

João acusava seus pares modernos, mas participava da mesma estrutura comercial que criticava. Ele era empresariado pela Marcos Mioto Produções Artísticas, um dos principais negociadores do sertanejo universitário, e aparecia nos principais rodeios sertanejos.

Sintomático desta cisão estética é o disco "Lado A/Lado B", que João Carreiro e Capataz lançaram em 2011, seu melhor trabalho. No lado A, canções de pegada tradicionalista como "Não Toca em Minha Vitrola", "A Tradição Não Morre Jamais" e "Caipira de Fato", todas compostas por Carreiro. No B, canções que qualquer sertanejo romântico poderia gravar, como a belíssima "Volta pro Meu Coração", também composta pelo dividido Carreiro.

Os paradoxos com os quais convivia talvez tenham sido pesados demais. À medida que o sucesso foi chegando, João Carreiro desenvolveu depressão e transtorno obsessivo compulsivo. Tornou-se paranoico e sofreu de síndrome de perseguição. Tornou-se também ciumento em relação à mulher e, quando bebia, o que se tornou muito frequente, todos os sintomas se incrementavam.

Separação da dupla com Capataz

Foi no início de 2014 que a dupla se separou. Carreiro saiu da vida artística para se tratar em Sidrolândia, nos arredores de Campo Grande, onde morava. Seu parceiro encontrou outra voz muitíssimo parecida, e criou a dupla Carreiro e Capataz. A mágoa permaneceu entre ambos.

Apesar das desgraças pessoais, pairava sob Carreiro a aura de ser o mais respeitado cantor do sertanejo bruto. Depois de seu resgate da estética de Tião Carreiro, cantores de vozes graves voltaram a ser comuns nos shows sertanejos. Duplas como Jads e Jadson, Loubet, Bruno e Barreto, Lucas Reis e Thacio, Mayck e Lyan e Carreiro e Capataz apareceram no cenário nacional, alargando um filão antes muitíssimo diminuto.

Carreiro tratou a depressão e o TOC, parou de beber e retomou a carreira como artista solo a partir de 2015. Mas a cisão estética continuou marcando sua trajetória. Em "Não Toco Não", de 2018, ele continuava dividido.

"Pediram que eu cantasse um sucessinho da hora/ essas modinhas atuais que na FM rola/ respondi no pé da letra: cêis tão me mandando embora/ será que ocêis não tão vendo que meu negócio é viola/ não toco, não/ essas moda de hoje em dia não tem nada de sertão."

Refém do próprio personagem

Refém do personagem que forjou para si, Carreiro teve com "Bagulho É Louco Mano" seu último grande sucesso. Lançada em 2022, a canção sintetiza os dilemas do violeiro. Batida eletrônica na introdução e refrão. Pandeiro e acordeão ao longo da música. E, apesar do arranjo antropofágico típico do sertanejo universitário, a viola caipira segue presente acompanhando a voz grossa que canta a letra tradicionalista.

"Eu cheguei num rolê diferente/ e a festa durou a noite inteira/ tinha um povo fumando pen drive/ e uns louco fumando mangueira/ tinha uns copo de um urso com asa que mantém a cerveja gelada/ e um som com o volume estridente/ repetindo as mesmas palavras/ que as novinha que 'tava de pé/ tinha que dar aquela sentada’/ eu não entendi nada/ se elas são novinha, por que tão cansada?/…/ Stanley, pen drive e narguile/ sushi, o povo evoluiu/ isso me confundiu/ será mesmo que nós tá no Brasil?"

Carreiro havia marcado uma cirurgia para correção de um prolapso da válvula mitral cardíaca para esta quarta. Era uma operação de risco controlado. O próprio cantor brincou em um dos últimos Stories de seu Instagram: "olha, gente, se eu empacotar [risos], eu não quero saber dessa roupinha aqui não", ironizou o violeiro, apontando para a bata hospitalar que vestia.

"Não combinou muito comigo isso, não! Tem florzinha!" Em seguida, disse que ficaria afastado das redes sociais e que "papai do céu estava tomando conta" de tudo.

Como todo grande artista, Carreiro tinha seus dramas, cisões e paradoxos pessoais. A morte dói mais quando é repentina. Ele era um gigante, e se ainda há gente que não o conhecia, talvez isso se deva ao próprio músico que, no fim, fez valer sua crítica ao comercialismo musical. Viva sua arte.

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