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Crítica literária destrincha a masculinidade para entender como ela moldou a cultura

Ligia Gonçalves Diniz equilibra a provocação, o rigor acadêmico e a leve chacota em 'O Homem Não Existe'

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São Paulo

"Muito mais que dirigir minha fúria contra os homens, a literatura me fez querer o privilégio da raiva que eles próprios experimentam", escreve a crítica literária Ligia Gonçalves Diniz.

Em um dos momentos inspirados de seu novo livro, ela afirma que deseja ir à briga por pura pirraça, como tantos líderes militares fizeram ao longo da história, e ser presenteada com "um epitáfio melancólico, em vez de um comentário jocoso sobre histeria ou tensão pré-menstrual".

mulher ruiva de cabelo encaracolado apoia o queixo nas mãos cruzadas sobre espalda de cadeira
A crítica literária Ligia Gonçalvez Diniz, autora de 'O Homem Não Existe' - Thais Alvarenga/Divulgação

São trechos que adiantam bem o tom de uma obra que equilibra o rigor acadêmico com a leve chacota, carregando o provocativo título "O Homem Não Existe" —inspirado na frase do psicanalista Jacques Lacan sobre o universo insondável da mulher.

Diniz, que é doutora em literatura e dá aulas na Universidade Federal de Minas Gerais, parte da psicologia, mas muito mais da ficção, para investigar o que é o masculino. Na verdade, é melhor abrir espaço para que ela explique em suas próprias palavras. "Quero distinguir os valores masculinos hegemônicos daqueles universais, se é que estes existem."

Mas há uma complicação extra nesse trabalho, cujo reconhecimento já adianta como a análise é sofisticada. Mesmo sendo mulher, a autora foi formada numa cultura predominantemente masculina —portanto, de alguma maneira, é parte integrante dela.

"Não só ler literatura escrita por homens, mas também ler como um homem —já que tantos livros foram escritos para eles— são experiências constitutivas do modo como entendo a mim mesma e o mundo."

A leitura, afinal, é um mergulho nas emoções e na estrutura de pensamento de seus autores. Durante a maior parte da história, esses autores eram quase todos homens. De novo, a sucintez de Diniz: "Quantas vezes nós, mulheres, alucinamos ser homens?"

Essa complexidade toda não significa que "O Homem Não Existe" seja impenetrável, com o perdão do trocadilho fálico. É um livro assim, cheio de piadas, comentários espirituosos e referências que vão de vídeos do comediante Andy Samberg a séries bobinhas de Fábio Porchat.

Mas o grosso da obra mobiliza uma quantidade imensa de referências bibliográficas. Muitas ponderações surgem de clássicos como Sêneca, Aristóteles e Homero, homens que fundaram o pensamento ocidental —aliás, fundaram masculamente com "fúria", a primeira palavra da "Ilíada".

"Eu concordo completamente que os homens precisam pensar mais a respeito de si próprios", diz a carioca, em conversa num café em São Paulo, contando que uma semente do livro nasceu quando ela ouviu um podcast com mulheres reclamando sobre o quanto os homens ficavam à vontade em "analisar o feminino".

"Mas por que a gente não pode falar dos homens? Essa é minha inquietação original. Em vez de ficar dizendo o que os homens devem ou não fazer, por que a gente não tem direito de fazer certas coisas que os homens fazem, mesmo que sejam babacas?"

A escrita de Diniz é avessa a formalidades como sua fala, com trejeitos de sala de aula que já devem ter chamado a atenção de quem acompanha seus textos sobre literatura na imprensa, inclusive nesta Folha. Em muitos deles, ela já se dedicava a analisar seus "hominhos".

"O que mais me impactou, pessoalmente, foi uma versão masculina sobre o que é ser inteligente, de como me portar no mundo para que as pessoas me considerassem inteligente", afirma, e o livro escancara muitas de suas experiências mais íntimas. "Sinto que perdi muito tempo fazendo um tipo melancólico, uma expectativa estética criada pelos livros, e a maturidade me trouxe a beleza da alegria."

O livro se divide em três grandes seções: na última delas, Diniz pensa o díptico raiva e melancolia, estereótipos em que se balanceia a honra masculina. No meio, há uma reflexão sobre beleza e vaidade, que homens projetam nas mulheres e recusam em si mesmos. E no princípio, era o pênis.

Surpreendeu até a autora que o livro precisasse dedicar um terço de suas páginas às brochadas de Philip Roth, aos êxtases masturbatórios de "Moby Dick" e à tal inveja do pênis tão criticada em Freud. Mas esse membro encabeçava demais a história da literatura —e ali havia algo a explorar.

O órgão, aliás, é descrito da forma mais objetiva possível por Diniz. "‘Falo’ é o pênis ereto, geralmente tomado em seus sentidos simbólicos. ‘Pinto’ é o órgão de homens que estão fora da minha esfera de atração sexual", escreve ela num glossário. "‘Pau’ é o que uso para me referir a todos os outros homens, a não ser quando, no meio da frase, lembro que minha mãe vai ler este livro, e então uso ‘pênis’."

Se soa divertido, é uma introdução bem-vinda ao estilo da autora. Se não, talvez seja caso de desfranzir um pouco essa cara de vilão.

O Homem Não Existe - Masculinidade, Desejo e Ficção

  • Preço R$ 89,90 (416 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Ligia Gonçalves Diniz
  • Editora Zahar
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