De volta à corrida eleitoral, Lula tenta reconstruir laços com evangélicos

Retorno da aversão ao PT no meio religioso, que hoje apoia em massa Bolsonaro, é um freio para o partido em 22

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Anna Virginia Balloussier
Anna Virginia Balloussier

Repórter especial, escreve sobre religião, política, eleições e direitos humanos. Está na Folha desde 2010, assinou o blog Religiosamente e foi correspondente do jornal em Nova York. É autora do livro “Talvez Ela não Precise de Mim: Diários de uma Mãe em Quarentena” (Todavia)

[resumo] Tentativas de Lula de retomar diálogo com grupos evangélicos, com vistas às eleições de 2022, são um novo capítulo da relação turbulenta entre o PT e a nata do pastorado brasileiro, que passou da ampla hostilização à figura do ex-presidente no pleito de 1989, quando foi comparado ao diabo, à sua aceitação por lideranças como Edir Macedo em 2002, para depois recair na aversão ao petismo nos anos Dilma.

​O ano é 2002. Mais próximo do que nunca de chegar à Presidência após três incursões eleitorais mal-sucedidas, Luiz Inácio Lula da Silva precisa afrouxar a resistência a seu nome em setores à direita. Daí a ideia de lançar uma carta.

Não é nada disso que você está pensando. Paralelo à Carta ao Povo Brasileiro, ansiolítica para um mercado arrepiado com a hipótese de um presidente que o mandasse às favas, outro documento ajudou o PT a amolecer corações relutantes.

O então presidente Lula (PT) e o bispo Edir Macedo (à dir.), fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, durante inauguração do canal de notícias "Record News", em São Paulo (SP), em 2007 - Ricardo Nogueira/PR

Dias antes do primeiro turno, milhares de militantes distribuíram o panfleto Carta aos Evangélicos em portas de igrejas. Trazia a estrela do PT com o peixe cristão, símbolo que em grego arcaico quer dizer “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”. Em português contemporâneo, o texto assinado por Lula clama por mais “princípios cristãos para o nosso povo”, valores que, “como cristão, e tendo também esperança cristã, tenho defendido ao longo de minha vida. Estamos juntos lutando pela mesma causa”.

Se hoje a animosidade entre o ex-presidente e a nata do pastorado brasileiro é um freio para eventual chapa petista, essa relação engatou o começo do século com um pé no acelerador. Desde 1989, quando concorreu pela primeira vez, o grão-petista era hostilizado pela maioria dos pastores de projeção nacional. Em 2002, virou o jogo.

“Para saber para onde os ventos eleitorais sopram no meio evangélico, é sempre bom olhar para a Igreja Universal do Reino de Deus”, diz Alexandre Landim, que prepara uma tese de doutorado na UFC (Universidade Federal do Ceará) sobre o envolvimento evangélico em eleições. Naquele ano, o bispo Edir Macedo fechou com o PT, assim como pastores que agora se dizem alérgicos ao lulismo, como Silas Malafaia e o deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP).

A projeção dos votos evangélicos no segundo turno de 2006, quando Lula abateu Geraldo Alckmin (PSDB) nas urnas, mostra a vantagem que o petismo já teve nessa parcela: seis em cada dez fiéis apertaram 13 naquele ano, segundo o Datafolha.

Em 2014, o PT perdeu essa dianteira: o tucano Aécio Neves foi o preferido de 53% do bloco. A maré mudou de vez com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, num pleito em que cerca de 70% dos evangélicos o escolheram. A bancada evangélica é um dos parceiros preferenciais do atual inquilino do Planalto.

O ano é 2019. Recém-liberto após ficar 580 dias preso em Curitiba, condenado na operação Lava Jato, o ex-presidente conta ao amigo Gilberto Carvalho, seu ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência, como fazia para driblar o tédio do cárcere. “Ô Gilbertinho, só tinha TV aberta na cadeia. Passei muitas madrugadas vendo programas evangélicos e fui me dando conta que esses caras têm uma incrível capacidade de comunicação e convencimento”, reproduz Carvalho.

Quando o PT estreou no Palácio do Planalto, os evangélicos eram pouco mais de 15% do Brasil. Em duas décadas, dobraram de tamanho. Segundo seu ex-assessor, caiu a ficha para Lula: impossível governar o país sem reconstruir pontes com o segmento.

Quem quer saber de papo agora? O pastor Samuel Câmara, que respaldou os dois mandatos de Lula, saca um provérbio bíblico para explicar o azedume pastoral com a hipótese de reconciliação: “É mais difícil ganhar de novo a amizade de um amigo ofendido do que conquistar uma fortaleza”. Ele preside a chamada Igreja Mãe das Assembleias de Deus no Brasil, sede pioneira da denominação, de 1911.

Carvalho não arrisca fechar as portas de vez para ex-aliados como Edir Macedo e Silas Malafaia. "Em política, sempre é perigoso a palavra nunca, me resguardo de usá-la . O que vou dizer é que dificilmente ocorreria de novo [a aliança], até porque nós aprendemos em quem confiar. A dura lição do golpe de 2016 foi aprender a distinguir entre aliados e oportunistas. Dificilmente retomaria aliança com esse tipo de gente."

O ano é 1989. Presidenciáveis começam a despertar para o lema que passa a guiar o eleitorado evangélico: “irmão vota em irmão”. A ideia de um governo de esquerda apavorava pentecostais. O bispo Macedo veste uma camisa com o nome de Fernando Collor para comandar uma vigília na véspera do primeiro turno. Nela, fiéis cantam: “O diabo na corda bamba, vamos collorir, vamos collorir”.

O apoio de Malafaia a Lula foi exceção na liderança. Televangelista já famoso, ele chegou a mediar o programa “Brizola e os Evangélicos”, pois via em Leonel Brizola, totem da esquerda trabalhista, alguém não submisso à católica CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). No segundo turno, foi de PT. Hoje se diz arrependido de não dar ouvidos ao pai, oficial da Marinha e também pastor. “Ele dizia assim pra mim: ‘Você está enganado, eles não se desvinculam de suas ideologias’.”

Macedo sugeria que Lula fecharia templos da Universal se vencesse, ainda que nada no programa do PT sinalizasse isso. Em fevereiro de 1990, o petista fez um balanço da derrota. Um de seus entrevistadores era André Singer, o cientista político que viraria porta-voz de seu governo no futuro.

Ele perguntou se o PT deveria ter agido diferente para desidratar essas acusações. “Certas coisas nós discutíamos a partir da nossa cabeça, a partir da cabeça do pessoal politizado. Quando disseram que a gente ia acabar com as religiões não católicas, nós fizemos um único programa especial sobre o tema”, respondeu Lula. “Precisávamos ter insistido nestas questões, porque é exatamente na faixa menos politizada que essas coisas pegam.”

Continuaram pegando, e em todas as faixas sociais. Vide a Universal. Por ser a congregação pentecostal mais organizada politicamente e dona de uma grande rede de comunicação, a igreja serve como “bússola evangélica” nas eleições majoritárias, diz Landim. E simbólica foi a fala de Macedo no “Clamor pelo Brasil”, evento realizado no carioca Aterro do Flamengo, em 1994. “No altar/palanque, Macedo declarou que o Brasil se encontrava mais uma vez entre Deus e o diabo.”

“Ele acionou o eixo de construção do universo simbólico da igreja: a força do satanás que obriga a entrada do ‘povo de Deus’ em uma guerra espiritual de natureza política”, afirma o pesquisador da UFC. Anos depois, o bispo lançou “Plano de Poder”, livro que incentiva o entrosamento evangélico na política.

A sanha antilulista abrandou em 1998 e rareou em 2002, “quando líderes evangélicos não só endossaram candidatos da centro-esquerda, como o seu representante nas eleições concorria por um partido socialista”, segundo o pesquisador. O presbiteriano Anthony Garotinho, ex-petista que competia pelo PSB, se dizia o mais à esquerda entre todos os candidatos daquele ano.

Garotinho ficou em terceiro lugar, e Lula virou a opção em 2002, ainda que sem unanimidade entre líderes evangélicos. Malafaia gosta de lembrar que figurou numa propaganda eleitoral do PT.

Lula chegou ao Planalto com José Alencar de vice. Católico, o empresário era do PL, com deputados ligados à Universal. Em 2005, migrou com eles para um partido articulado por bispos da igreja, o atual Republicanos. Dizia então que a nova sigla não corria o risco de ser estigmatizada como costela partidária do império religioso: “Isso aí é uma marca altamente positiva, é uma marca cristã”.

“A presença da Universal nos quadros do PL era minimizada pelo PT. Os maiores entusiastas da aliança eram Lula e José Dirceu, que julgavam fundamental a presença de Alencar”, diz Landim.

Alguns pastores não estavam satisfeitos com o governo tucano de FHC e tinham interesse em influenciar políticas assistencialistas. O petista capturou essa sensação e disse que esperava contar com a ajuda dos evangélicos para atacar os problemas sociais do país: “Vocês nunca, na história da igreja evangélica, foram chamados à responsabilidade e a participar da construção desse país como eu vou chamar”. Pronto: nunca antes na história deste país, companheiros pastores, tantas lideranças haviam aderido à estrela vermelha.

O ano é 2010. Marco Feliciano, que conquistaria seu primeiro mandato de deputado no pleito daquele ano, confessa durante um culto. “Como um papagaio”, repetia que o PT fecharia igrejas pelo Brasil. Replay da fake news de 1989. Elogia Lula, de saída do poder: uma figura “messiânica” que “desperta a esperança no coração do povo”. Também tratou de desmentir um rumor infundado de que Dilma Rousseff, candidata do PT, era homossexual.

A relação entre petistas e pastores, contudo, logo deu sinais de desgaste. Evangélicos perceberam que não teriam o espaço desejado no governo e ficaram cabreiros com as bandeiras ideológicas que tremularam menos nos anos Lula. O programa Escola Sem Homofobia, com instruções para professores lidarem com o tema nos colégios, coroou a cizânia.

Apelidado por conservadores como kit gay, o material foi confeccionado em 2011, após a Comissão de Direitos Humanos da Câmara aprovar uma emenda para um projeto anti-homofobia. O Ministério Público questionou o Ministério da Educação, à época sob guarida de Fernando Haddad, sobre os recursos. A pasta chamou uma ONG para produzir a cartilha.

Haddad relembrou o imbróglio em texto de 2017 para a revista Piauí. Um projeto do Ministério da Saúde foi apresentado como sendo o tal “kit gay” do MEC. Destinava-se à prevenção de DST/Aids “e tinha como público-alvo caminhoneiros e profissionais do sexo nas estradas de rodagem —com uma linguagem, portanto, direta e escancarada”. A fake news teve vida longa e, em 2018, foi usada por Bolsonaro para enquadrá-lo como “o candidato do kit gay”.

Para Carvalho, as pautas identitárias já estavam na mira antes, e agora que ganharam ainda mais relevo, virarão alvo preferencial dos rivais. "Elas foram fartamente utilizadas para nos demonizar. Diziam, 'ah, Lula vai obrigar igrejas a casar homossexuais'. A gente sempre defendeu foi a união civil. Temos que explicar que a agenda identitária, se olhada sem maldade, não é contra evangélicos."

​O ano é 2021. Lula discursa pela primeira vez após o ministro do STF Edson Fachin abrir alas para sua candidatura no ano que vem, ao anular as condenações que sujavam sua ficha política. Um trecho de sua fala enerva o pastorado: “Muitas mortes poderiam ter sido evitadas, muitas mortes. E que o papel das igrejas é ajudar para orientar as pessoas, não é vender grão de feijão ou fazer culto cheio de gente sem máscara, dizendo que tem o remédio pra sarar”.

Líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, o apóstolo Valdemiro Santiago foi um dos expoentes da elite pastoral desgostosos com o tom. “O senhor acabou com sua pretensa campanha. Nem sabe se vai fazer isso, alguém vai te botar de novo na cadeia”, diz num vídeo em que usa seu costumeiro chapéu de caubói. Comenta ainda que Lula o procurou ao descobrir um tumor, em 2011. Quando “o câncer estava comendo suas garganta”, afirma, “orei pelo senhor no telefone”.

O discurso de Lula "foi para os crentes evangélicos e evangélicas brasileiras", diz o coordenador do núcleo evangélico do PT, o pastor Luis Sabanay. "É como pensava Jesus: pensava grande, pensava em um Reino de Paz. Um mundo sem morte, sem violências contra o que ou quem quer que seja. Pensou no Reino da Alegria, com lazer, picanhas, cervejas e a juventude poder passear livremente."

Dois meses após deixar a prisão, o ex-presidente reforçou a certeza de que PT e evangélicos precisam fazer as pazes. Comentou que tem "jeitão de ser pastor, tô de cabelo branco". Lula, diz Gilberto Carvalho, "não está, nem ninguém de nós, satisfeito com o estágio atual da nossa relação. Falamos por telefone esses dias, ele tem interesse, vai organizar um encontro com o mundo religioso".

Diretor da Fundação Perseu Abramo, centro de formação do PT, Alberto Cantalice diz que eles estão discutindo "a questão evangélica no Brasil" e define o segmento como "objeto de preocupação".

Uma saída possível é focar na questão econômica, que por extensão atinge muito eleitor evangélico, defende Carvalho. "Nossa política clara é cuidar dos pobres. Inclusive, nos permite ter o diálogo de que essa é a opção de Cristo no Evangelho."

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