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Luis Augusto Fischer

Racismo e pobreza marcam 'Torto Arado' e outros 3 ótimos romances atuais

Livros de Itamar Vieira Junior, Paulo Scott, Jeferson Tenório e José Falero têm a força dos valores profundos cujo tempo chegou

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Luís Augusto Fischer

Professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de “Literatura Brasileira - Modos de Usar” (L&PM).

[resumo] Ensaísta discute a entrada em cena, em tempos de pandemia e debates públicos, de quatro escritores afrodescendentes —Itamar Vieira Junior, Paulo Scott, Jeferson Tenório e José Falero. Argumenta que os romances desses autores, marcados pela perspectiva da pobreza, do racismo e da violência, carregam valores profundos cuja época chegou —com a retaguarda de investimentos anteriores em educação.

1.
Nesses dias entrei numa conversa no Facebook —era e continuou civilizada, coisa nem tão frequente no meio— que tinha no centro a lamentação de um escritor da minha geração, por volta dos 60 anos. Em outras palavras, ele se queixava de não haver leitor para gente de qualidade, que produzia material de excelência, dominava os meios expressivos e estava na janela há décadas.

Montagem com os escritores Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Paulo Scott e José Falero
A partir da esq.: os escritores Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Paulo Scott e José Falero - Núcleo de Imagem

Minha entrada se deu para duvidar da falta de leitores —e dei como exemplo escritores (os adjetivos aqui podem variar) periféricos, negros, identitários etc. que estão circulando como nunca antes. Trata-se de um reconhecível fenômeno, que se expressa hoje em dia por editoras segmentadas, com identidade negra, como Malê, Mazza, Figura de Linguagem, Venas Abiertas, Pallas, Ogums. Já este fenômeno dá o que pensar.

2.
Logo atrás está o notável aumento de oferta de cursos superiores no Brasil, nos tempos de Lula e Dilma, tanto em faculdades privadas, para as quais o governo federal providenciou amplo financiamento, quanto em públicas. Foi apenas agora, neste século, que o Brasil conseguiu alcançar escola para todos. Ainda com qualidade duvidosa e financiamento problemático, mas acessível.

O resultado desse esforço está aí. Uma vez proporcionado o acesso, eis que, sem milagre algum, muitos milhares de pobres brasileiros, entre os quais a maioria de afrodescendentes, simplesmente passaram a escrever e ler, e a querer ler coisas que fizessem sentido.

3.
Sim, esse é um fenômeno identitário, mas não se limita a isso. É preciso tomar distância e constatar que, de certo modo, é sempre assim que acontece: os leitores, no mundo moderno, se formam lendo coisas que façam sentido imediato, como o romance urbano no século 18 ensinando como funcionava o mercado do casamento, ou as histórias de piratas, trazendo para dentro de casa notícias daqueles mundos distantes que iam sendo acessados, eram demandas vitais para aquele público.

Assim se pode olhar para os casos em que grupos sociais, seccionados por gênero, idade, etnia, nacionalidade, especialidade profissional, o que for, são abastecidos com literatura (e arte em geral) que lhes fale à alma diretamente. A leitura de clássicos vindos de outros tempos e quadrantes, regra geral, é conquista mais lenta, que, falando nisso, tem que ser ensinada na escola sim, que deve mediar o remoto com o próximo. Machado de Assis para todos, mas não custa oferecer primeiro leitura de compreensão imediata.

4.
Uma vez desnaturalizado o que se chamava de cânone literário, a conversa ganha amplitude e profundidade. Mesmo os clássicos ocidentais são, em primeiro, ocidentais —não deixam de ser interessantes, mas deixam de ter uma hierarquia transcendental.

Até o Borges setentão sabia disso. Num ensaio chamado “Sobre os Clássicos”, reunido em “Outras Inquisições”, ele relativizou: “Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim”.

Ou outra frase, que parece saída de um relativista, não de um classicista: “Clássico não é um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles méritos; é um livro que as gerações humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa lealdade”. Onde se lê “nação” ou “gerações”, ponhamos “grupo social”, e encerram-se as perguntas, meritíssimo.

5.
A pandemia alterou quase tudo, e o lugar da literatura, como passatempo ou forma de reflexão, entrou nessa. O livro, em papel ou não, parece ter ganhado um sentido novo no último ano.

Não temos números nítidos, mas é certo que aumentou a circulação de livros, o número de edições, especialmente em tiragens pequenas e muitas vezes vendidas pelo autor, e houve mesmo fenômenos correlatos, como as lives de lançamento de livros ou para leitura e conversa sobre livros, os saraus online.

A literatura, uma arte essencialmente fria na modernidade, elaborada na solidão e fruída no isolamento, parece ter ganhado temperatura com a leitura pública, o compartilhamento de impressões.

6.
E em paralelo ocorreu o transbordamento da luta antirracista, que nunca mais será a mesma. Não foram só os assassinatos de pessoas negras, nos EUA ou no Brasil: foi uma virada de maré, em tudo, da sala de aula à delegacia de polícia, passando pelos estádios, governos e parlamentos. Com um vigor comparável ao movimento feminista, já nítido há mais tempo, essa luta não vai mais voltar ao patamar anterior, em que o racismo podia ainda alegar inocência.

7.
No Brasil já havia figuras negras com lugar até canônico na literatura. Temos Machado de Assis, por pouco que tenha escrito sobre o tema do racismo e contra a escravidão com que conviveu por quase 50 anos. Lima Barreto, mesmo dispersivo e pouco rígido com sua produção, está aí.

Há bem menos tempo ingressaram no radar da escola, do vestibular, da rotina (fraca) de leitura no país autoras do passado como Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, ou autoras vivas como Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves. Duas ou três décadas atrás, entraram para o repertório do debate obrigatório Paulo Lins e Ferréz. Não se trata de casos isolados mais.

8.
Faz pouco, quatro autores devem ser alinhados nesse percurso. Quatro romancistas —e isso não é detalhe, tomando a forma romance como fruto de uma visão de conjunto sobre determinados tempo, espaço e experiência social, nesse sentido, portanto, uma forma mais difícil que o conto, a canção ou o poema.

Por ordem de entrada em cena: “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior (Todavia), e “Marrom e Amarelo”, de Paulo Scott (Alfaguara), ambos de 2019, e “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras), e “Os Supridores”, de José Falero (Todavia), ambos de 2020.

O grupo é muito reduzido diante da variedade desses anos e conta apenas com homens. Mas, ponderadas essas limitações, os quatro têm alta qualidade e oferecem um espetáculo que precisa nos impressionar.

9.
“Torto Arado” contém um apelo que os demais não têm: traz para o palco um mundo distante, geográfica e socialmente, lá do sertão fértil da Chapada Diamantina. Em linguagem transparente, que nada tem a ver com os experimentos do paradigmático Guimarães Rosa, o romance tem protagonistas mulheres, duas irmãs, e uma arquitetura narrativa algo fluida, com troca de ponto de vista nas três partes que o constituem.

O manejo do tempo contribui para essa fluidez, porque temos cenas miúdas do presente alternando com evocações velhíssimas, sempre conectadas com o baixo-contínuo da permanência de escravidão, aberta ou velada. Mas com esses traços, que evocam um mundo pré-urbano, vivenciado como mágico e atravessado por práticas religiosas envolventes, o romance dá a ver toda a estrutura de dominação social implicada.

10.
Os outros três são romances urbanos, em que qualquer dimensão transcendental de tipo religioso inexiste. “Marrom e Amarelo” repassa a história de dois irmãos, de mesmo pai e mesma mãe, mas com tons de pele diferentes, e que por isso vivem distintas realidades emocionais e sociais, e é narrado com grande amargura; o ambiente é o das classes médias, que aceitam com muitas restrições as pessoas negras.

“O Avesso da Pele” tem, ao contrário, certo tom lírico, que o aproxima de “Torto Arado”, mas o mundo é o da cidade grande, os personagens vivem e agem à sombra das instituições modernas como a escola e a polícia —o personagem do pai é professor de escola pública, e sua morte se deve à violência de nosso tempo, que prefere vítimas negras.

“Os Supridores” conta a história de dois amigos, trabalhadores precarizados, abastecedores das prateleiras de supermercado que gente como eu vê sempre organizadas e repletas. Como Quixote e Sancho, são um o cérebro e outro o amigo fiel: o primeiro convence o segundo a vender drogas para ter um mínimo de altivez social, que o salário mínimo e a sua rotina vão negar para sempre.

Quanto ao tom do relato, não há nem resquício de lirismo, nem viés de amargura: um andamento nítido, com um quê irônico, com figuras e cenas claras —há mesmo um mapa para orientar a leitura, sobre cena decisiva—, e uma virada final que não cabe aqui enunciar.

11.
Em cada um dos quatro romances, um mundo se apresenta inteiro, com condicionantes sociais ou psicológicos, com horizontes possíveis e desejáveis, com um processo acompanhado por inteiro. São histórias de nosso tempo (mas “Torto Arado” podia ser datado de umas décadas atrás, o que não lhe tira mérito nem qualidade).

Os outros três em conjunto representam, de certa forma, um corte transversal da vida urbana atual: Scott nos mostra o mundo das classes mais acima (mas sem ricos); Tenório, o das classes médias com perigo de queda; e Falero nos dá o mundo da pobreza.
Nos quatro, a violência é para qualquer momento, numa proporção que gente branca e confortável como este resenhista não experimenta, salvo excepcionalmente. Os quatro romances abrem fendas na parede invisível que nos separa da vida rotineira dos pobres e dos negros brasileiros.

12.

São quatro escritores nascidos e/ou criados fora das duas metrópoles brasileiras (embora os quatro editados por majors), mas seus romances não padeceram de restrições na recepção, ao que consta, em função de qualquer coisa como “regionalismo” ou “localismo”, ainda que carreguem, os quatro, marcas de paisagens e linguagem não paulistana nem carioca. Por quê?

Aqui outra novidade: para além de ser o corredor do supermercado um cenário universal, para além de o sertão oferecer, depois de Rosa ao menos, condições para uma metafísica de amplo alcance, o racismo e a pobreza os universalizam (o verbo é ruim, mas bastante). O corte epistemológico proporcionado pelo tema de fundo supera o provincianismo, de parte a parte, para autor e leitor.

13.
Quase uma década atrás, veio a público uma antologia da revista Granta, “Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros”, com 20 autores abaixo de 40 anos. Essa seleção oferece um excelente contraponto, ainda que seja desigual o material comparado (lá 20 contos, aqui quatro romances, mais o critério de idade etc.).

Em estudo quantitativo, publicado aqui na Folha em 2 de setembro de 2012, apontei que em 60% deles o centro dos enredos trazia conflitos entre filhos e pais, em 55% deles havia alusões “cult” como parte importante da retórica do texto, e 50% deles apresentam personagens escritores, eventualmente em crise com a tarefa de escrever. Fazendo uma manchete um pouco distorcida, é o oposto do que verificamos nos quatro romances aqui abordados.

14.
São quatro escritores que se identificam como afrodescendentes, e por certo carregam suas vivências para a alma do texto. E aqui creio que encontramos um elemento de imensa força: a organizar cada um dos quatro ótimos romances, o leitor percebe, nas entrelinhas mais do que no enunciado, a pujança dos valores profundos que estão implicados nas tramas.

Aqui nos ajuda a pensar Bakhtin: qualquer romance se estrutura em torno de um eixo de valores, que o narrador e as personagens não necessariamente encarnam nem explicitam diretamente, mas que se fazem sentir no conjunto do relato. Ao contrário da crise de leitores ou de criatividade que alguns escritores experimentam, esses quatro romances oferecem, sem qualquer populismo ou apelo, a força das obras estruturadas em torno de valores cujo tempo chegou.

Não, nenhum dos quatro é ideologia trivial, e é muito provável que os quatro sobrevivam a seus autores. Assim como o naturalismo dos anos 1880 e 1890, o romance crítico e a poesia moderna dos anos 1930 a 1950, a crônica carioca dos anos 1950, a canção de protesto e o tropicalismo nos anos 1960 e 1970, esses quatro são romances fortes também porque carregam em seu ventre a história.

Conheça os livros citados no texto

Torto Arado

Autor: Itamar Vieira Junior

Editora: Todavia

Quanto: R$ 57,90 (264 págs.)

Marrom e Amarelo

Autor: Paulo Scott

Editora: Companhia das Letras

Quanto: R$ 39,90 (160 págs.)

Os Supridores

Autor: José Falero

Editora: Todavia

Quanto: R$ 59,90 (304 págs.)

O Avesso da Pele

Autor: Jeferson Tenório

Editora: Companhia das Letras

Quanto: R$ 47,90 (192 págs.)

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