Pós-ditadura, saldo de 203 CPIs vai de queda de presidente a acabar em pizza

Entre sucessos e fracassos, tornaram-se poderosos instrumentos de fiscalização do Executivo

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Eduardo Martins de Lima

Doutor em ciência política, é autor de "Sistemas Multipartidários e Eleitorais em Perspectiva Comparada", entre outros livros

[resumo] De Sarney a Bolsonaro, o Brasil já passou por 203 CPIs, sendo a da Covid a mais recente delas. Embora nem sempre com resultados efetivos, ajudaram a elucidar grandes esquemas de corrupção e se firmaram como importante mecanismo do modelo de freios e contrapesos do Estado democrático.

Desde a redemocratização, houve no Brasil 203 CPIs na Câmara dos Deputados, no Senado ou em ambas as casas (nesse caso, Comissão Parlamentar Mista de Inquérito - CPMI).

Para não destoar de governos anteriores, o presidente Jair Bolsonaro também já conta com uma CPI, a da Covid, e estará na vitrine ao longo de seus 120 dias de duração, podendo o prazo de funcionamento ser prorrogado por mais 60 dias.

Pela Constituição de 1988, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) tem poderes de investigação próprios de autoridades judiciais, podendo averiguar fato determinado, por prazo certo, mas não se permitindo eventuais devassas de um Poder sobre o outro.

A CPI auxilia o Legislativo no exercício das funções legiferante, fiscalizadora ou de controle da administração pública e deve se guiar pelo interesse público. Caracteriza-se como atuação de um Poder (Legislativo) no espaço de atuação de outro (Executivo ou Judiciário), a partir do princípio dos “freios e contrapesos”. Não significa, portanto, intervenção indevida.

Dentre as atividades da CPI, incluem-se realização de diligências, convocação de ministros e inquirição de testemunhas e investigados. Pode determinar ainda medidas excepcionais, como a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico, desde que essenciais à investigação.

Ao Judiciário e a órgãos de controle reserva-se o direito de intervir em atos da CPI quanto estes atentam contra a legalidade e infringem os princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

Nas últimas três décadas, CPIs já alcançaram uma ampla gama de resultados: derrubaram presidente, abalaram governos e nocautearam partidos políticos, mas também já “acabaram em pizza”, como diz a expressão popular.

Entre sucessos e fracassos, firmaram-se no período democrático como importante e poderoso instrumento de fiscalização do Executivo e, em um dos casos, de enfrentamento com o Judiciário. Não à toa, muitos políticos costumam dizer que se sabe como começam as CPIs, mas não como terminam.
A seguir, relembro algumas das mais impactantes CPIs ou CPMIs desde os anos 1990.

A primeira delas é a chamada CPI do PC Farias, que investigou operações nada ortodoxas do então presidente Fernando Collor de Melo e do empresário Paulo César Farias, seu tesoureiro de campanha e “braço direito”.

Já no início do governo Collor surgiram denúncias de corrupção, mas uma em especial, a entrevista de Pedro Collor, irmão do presidente, à revista Veja, em maio de 1992, teve efeito devastador. Ele afirmou que estava em curso um grande esquema de corrupção e o seu timoneiro era PC Farias.

Em outra entrevista bomba, o motorista Francisco Eriberto França revelou à revista Isto É, em junho de 1992, que ele levava cheques de PC Farias para pagar despesas da família Collor.

Collor, na época, desafiou seus oponentes e na TV negou as acusações. Conclamou a população a sair às ruas em seu apoio, com roupas nas cores da bandeira nacional. O “tiro saiu pela culatra”, e milhares de jovens, trajados de roupas pretas e com os rostos pintados de verde e amarelo, ganharam as ruas em manifestações exigindo o “Fora Collor”.

Diante das denúncias, foi instalada a CPI em junho de 1992. Alguns meses depois, descobertos os esquemas de corrupção, a CPI foi a “pá de cal” para Collor, que sofreu impeachment. PC Farias foi encontrado morto quatro anos depois.

No governo de Itamar Franco, em 1993 foi constituída uma CPMI para investigar a corrupção no Orçamento da União capitaneada por deputados e senadores. Conhecidos como “anões do orçamento”, alguns deles acabaram cassados ao fim das apurações, e outros renunciaram a seus cargos para escapar das punições.

Um desses deputados deu uma declaração que entrou para a história das CPIs. João Alves alegou que sua fortuna era resultado de muita sorte, pois teria ganhado mais de 200 vezes na loteria.

Pouco depois, em 1997, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, habilidoso no convívio com o Legislativo, barrou a criação de uma CPI que visava apurar a denúncia de compra de votos de parlamentares para a aprovação da emenda que permitia a reeleição. FHC foi o primeiro presidente a ser reeleito.

Ainda em seu governo, uma importante CPI foi a do Judiciário, em 1999, que apurou a trama armada pelo empresário e senador Luiz Estevão e o juiz Nicolau dos Santos, o Lalau, então presidente do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo, para superfaturar obras. A negociata envolveu cerca de R$ 169 milhões.

O juiz foi preso e teve sua aposentadoria cassada; Luiz Estevão perdeu seu mandato e foi condenado a 31 anos de prisão.

Observe-se que essa CPI trouxe, também, inovações no quadro normativo, ao propor emenda constitucional (EC 45/2004) que, dentre outros dispositivos, introduziu o Conselho Nacional de Justiça como órgão do Judiciário.

Durante o governo Lula, merece atenção a CPMI dos Correios, de 2005, com efeitos devastadores. Veio à tona um vídeo de um diretor dos Correios que recebia recursos financeiros indevidamente. O diretor atuaria a mando do ex-deputado Roberto Jefferson.

Pouco depois, em histórica entrevista à Folha, Roberto Jefferson afirmou que parlamentares recebiam mesadas para apoiar o governo Lula, o que ficou conhecido como mensalão do PT. O deputado forneceu detalhes das operações que culminaram na queda do então ministro da Casa Civil, José Dirceu.

O fruto principal da CPMI foi o julgamento de 40 pessoas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, das quais 25 foram condenadas.

Quanto ao presidente Lula, não foi alvo de processo, “deu a volta por cima” e se reelegeu em 2006. O mesmo não pode ser dito do PT, que teve sua imagem comprometida.

Ainda em 2006 foi instalada a CPMI dos Sanguessugas, que deu sequência às investigações da Polícia Federal sobre o desvio de verbas públicas destinadas a compra de ambulâncias. O esquema teria movimentado cerca de R$ 110 milhões.

A CPMI foi concluída e recomendou a abertura de processo de cassação de 72 parlamentares, mas, em seus desdobramentos, não se registrou nenhuma cassação. Pode-se dizer que “acabou em pizza”. Efeito do corporativismo parlamentar?

Ao longo do governo de Dilma Rousseff, destaca-se a CPI do Cachoeira. A Polícia Federal, em 2011, desencadeou a Operação Monte Carlo, revelando a atuação criminosa do bicheiro Carlinhos Cachoeira.

Ele foi acusado de chefiar um esquema de jogo ilegal em Goiás e de estruturar rede de corrupção, infiltrada no governo estadual, que envolveria parlamentares, policiais e empresas.

Na prática, o inquérito parlamentar resultou apenas na cassação do então senador Demóstenes Torres.

A CPI da Petrobras, criada em 2009, no governo Lula, teve continuidade no governo Dilma, em 2014, como CPMI, e em 2015, na Câmara dos Deputados, como CPI, com vistas a investigar escândalos de corrupção e gestão temerária na Petrobras.

A rigor, foram encerradas sem requerer o indiciamento de políticos. A CPI de 2015 sugeriu o indiciamento de 69 pessoas, incluindo ex-diretores da Petrobras, ex-funcionários e operadores.

Ademais, o grande trunfo das investigações não estava nas mãos do Legislativo, mas sim nas do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, por meio da operação Lava Jato.

Pode-se dizer que o esquema de corrupção na Petrobras abalou profundamente os governos petistas e o próprio partido, mas não poupou políticos de outras siglas (como do PMDB e PP, por exemplo), empresários, doleiros e empresas brasileiras de grande porte ( Odebrecht, OAS e Mendes Júnior, dentre outras).

A Lava Jato atuou por mais de seis anos. Revelaram-se depois escândalos na condução da investigação e em processos judiciais. A imprensa noticiou, dentre outros impropérios, relações nada republicanas entre o ex-juiz Sergio Moro e membros do MPF. Em fevereiro deste, o trabalho da operação foi incorporado por outras unidades no âmbito da Procuradoria-Geral da República.

Agora, no governo Bolsonaro, a CPI da Covid promete capítulos de muita emoção. Tem como objetivo apurar ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia do coronavírus, em um contexto de crise sanitária sem precedentes e com milhões de infectados e centena de milhares de mortos.

O “poder do fogo” de uma CPI relaciona-se diretamente com o relatório final que produzir e com o tempo que levar na sua investigação. Vale dizer, o relatório final precisa ser robusto, contar com análise contundente sobre os fatos investigados, relacionar causa e efeito, indicar responsáveis. Assim sendo, poderá produzir impactos ao “passar a bola” para o Ministério Público.

A CPI da Covid tem elementos de sobra para seu trabalho: falta de oxigênio que levou à morte de muitos cidadãos, falta de medicamentos e equipamentos para intubação de pacientes, falta de leitos, atrasos propositais nas tratativas de aquisição de vacinas, orientações inadequadas à população, uso e compra de medicamentos para o chamado tratamento precoce sem comprovação científica, dentre outros.

O “xadrez está sendo jogado” e não parece, a exemplo de outras CPIs históricas, que “acabará em pizza”. Tempo ao tempo...

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