Descrição de chapéu
Luiz Joaquim

'Pantanal' de 2022 tem mais recursos, mas encanta menos que novela original

Da versão de 1990 à atual, houve involução na linguagem de nossa teledramaturgia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luiz Joaquim

Jornalista, editor do cinemaescrito.com e professor de cinema no Recife

[RESUMO] Embora disponha de mais recursos de produção e tecnologia, a novela "Pantanal", da Globo, parece demonstrar uma involução da linguagem da teledramaturgia quando comparada com a primeira versão, de 1990, na Manchete. O uso excessivo de imagens aéreas e de piruetas de câmera, na tentativa de parecer grandiloquente, acaba por limitar o sentido narrativo e de direção da produção atual, enquanto a novela de 30 anos atrás encontrava na força da história, dos atores e dos diálogos sua densidade encantadora.

Em 1961, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Glauber Rocha escreveu:

"De ‘Ganga Bruta [de Humberto Mauro] a A Primeira Missa’ [de Lima Barreto], o cinema brasileiro involuiu violentamente [...]. É criticamente que não se pode considerar ‘A Primeira Missa’ em 1961 quando este é um filme mais antigo e mais incompleto do que ‘Ganga Bruta’ —fita moderna de 1933, fita muda que rompeu a história e permanece válida [...]. Armando-se uma ponte ao contrário do novo Humberto Mauro ao velho Lima Barreto, é possível traçar a involução da linguagem cinematográfica brasileira".

Alanis Guillen e Juliana Paes em Pantanal. As atrizes estão sentadas lado a lado na beira de um rio.
Maria Marruá (Juliana Paes) e Juma (Allanis Guillen) na novela 'Pantanal' - João Miguel Jr./Divulgação

É esta colocação, provocadora e sagaz do diretor de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", que vem à cabeça quando nos deparamos com a nova versão da novela "Pantanal" (2022), produzida pela TV Globo, reescrita por Bruno Luperi e com direção artística de Rogério Gomes, em seu início, e agora de Gustavo Fernandez, em contraste com a "Pantanal" (1990) produzida pela TV Manchete, escrita por Benedito Ruy Barbosa, sob direção geral de Jayme Monjardim.

Não é o caso de ser peremptório nas palavras como foi Glauber em sua comparação, mas, passadas as semanas iniciais da versão atual, é possível dizer, a despeito de toda a tecnologia que envolve a produção da TV Globo, que a novela encolheu em sua capacidade de encantamento.

Alguém pode gritar que o aspecto do ineditismo do tema em 1990 era um trunfo da Manchete. Sim, mas um trunfo muito bem-aproveitado.

Quanto aos acertos, não nos referimos às tomadas revelando o nu de seus atores e atrizes –que, claro, ajudaram na popularidade da telenovela–, e sim às variadas opções de contar uma história bem longe de um estúdio.

"Pantanal" trazia atores não famosos assumindo o protagonismo romântico, contextualizava as relações entre os personagens por meio de diálogos extensos, que valorizavam seu conteúdo (como uma conversa importante realmente costuma ser), e nos apresentava tudo isso em um ritmo muito lento, fazendo absoluto sentido com aquele tempo parado da região que serviu de locação.

A própria natureza era respeitada em sua beleza sonora na composição da dramaturgia. Não era raro termos os silêncios (ou o som da natureza) servindo de background para as conversas de seus personagens, o que emprestava mais autenticidade àquilo que era representado.

Havia, ainda, os supercloses nos rostos dos casais apaixonados, banhando-se na beira do rio. A prática de tal enquadramento era impensável nas telenovelas de então, habituadas aos fortes refletores de seus estúdios.

Da mesma forma, o deserto sonoro das locações pantaneiras permitia que o elenco, em cenas importantes, atuasse quase que sussurrando, o que convinha para as situações românticas.

A propósito daquela locação, a equipe da primeira versão de "Pantanal" passou os primeiros cinco meses inteiros no local. Impossível não acreditar que tal imersão, em um lugar onde não se tinha muita notícia do mundo, não tenha sido definidora para a criação de seus atores.

Passadas três décadas, está nítido que o comportamento social é outro em diversas instâncias e não é raro encontrar algo que poderia ser aceitável em 1990, mas não passaria em 2022. Deixar de promover uma atualização no comportamento dos personagens, portanto, seria inaceitável, sob pena de soarem anacrônicos. Pior, de soarem ofensivos.

A questão é: a antiga "Pantanal" já era moderna o suficiente para apresentar homens sensíveis, ainda que truculentos (como Zé Leôncio), e mulheres que não temem e não se curvam (Maria e Juma Marruá). Em outras palavras, não demandava muito esforço recriar, no contemporâneo, esses tipos.

Mesmo assim, o risco de refazer a novela era alto. Do ponto de vista estético, entre deslizes e acertos, há, na nova versão, um excesso de tomadas aéreas, transbordando de seus drones, cujo sentido narrativo esvaziou-se.

Tomadas áreas hoje são, na maioria, muletas visuais. Há 30 anos, elas revelavam para mais da metade dos brasileiros uma paisagem pantaneira virgem e, no contexto do enredo, deixava nítido que a imensidão da região atestava o grau de isolamento da turma de Zé Leôncio.

Enquanto a eloquência de "Pantanal" da Manchete residia, sem firulas, nos planos estáticos e no som ambiente dando conta daquela beleza natural, a pretensa eloquência da versão platinada —a julgar pelas primeiras semanas— se vale das câmeras em movimento, indo em direção aos atores.

E a atual trilha sonora... quanta insistência. Ouvir mais a natureza em uma novela sobre a natureza seria bom. Não que a versão anterior não exaltasse a magistral suíte sinfônica composta por Marcus Viana, mas esse trabalho, igualmente inovador, agarrou-se rapidamente à novela da Manchete e tornou-se um órgão indissociável do corpo dramático do todo.

Pelo aspecto dramatúrgico, os diálogos com os quais íamos conhecendo a história eram densos, mas econômicos, e por eles pouco se duvidava do que nos era apresentado.

Na atual versão, o contrário disso pode ser percebido no núcleo dos avós maternos do personagem de Jesuíta Barbosa (Jove), interpretados por Selma Egrei (Mariana) e Leopoldo Pacheco (Antero).

Egrei foi aqui condenada a uma personagem monocromática na primeira fase —o da constantemente irritada e autoritária matriarca. Já Pacheco assumiu o oposto a isso, soando quase bobo em seu modo Poliana de resolver impasses.

Em 1990, para os mesmos personagens, tínhamos uma afinação assombrosa entre o altivo Antero (Sérgio Britto) e a elegante Mariana (Nathalia Timberg). Ambos formavam um retrato bem-desenhado de uma burguesia decadente, cética e ainda consciente disso.

Outro exemplo de desacerto, um dos mais eloquentes na síntese do que diferencia a velha da nova versão, está na sequência em que Irma (antes Carolina Ferraz, agora Malu Rodrigues) se insinua para Zé Leôncio (Paulo Gorgulho/Renato Góes) na beira de um rio.

A versão de 1990 trazia uma carga romântica difícil de superar, com Ferraz compondo sua Irma em um misto de ingenuidade e mistério, ao lado de um Gorgulho charmoso em seu Zé Leôncio.

A versão atual, com diálogos e mise-en-scène reduzidos, comprometeu o que poderíamos entender sobre a intensidade do amor de Irma por Leôncio, com os novos atores dando vida a dois jovens excitados, e não a dois adultos encantados entre si.

Já na segunda fase, não é difícil perceber que falas escritas para Guta (Julia Dalavia) soam professorais, não por responsabilidade da atriz, quando o assunto entra em questões de gênero e identidade sexual; assim como soam as do Velho do Rio de Osmar Prado, ao explicar sua postura ecológica.

Trinta e dois anos antes, a defesa já existia nas falas dos personagens —não em tom ativista, mas como uma reflexão incontestável. Quanto ao Velho do Rio de 1990, era interpretado por Cláudio Marzo em tom austero, mas acolhedor. Marzo fez ainda dois outros papéis na novela da Manchete: o protagonista José Leôncio (na segunda fase da trama) e o pai dele, Joventino (na primeira fase).

O novo Jove (Marcos Winter em 1990, agora Jesuíta Barbosa), filho do protagonista, também não tem mais o tom leve de antes. Agora é melancólico e constantemente insatisfeito, o que, em termos, parece coerente com a atual geração, vivendo em um Brasil deprimido e raivoso. Diferente dos jovens que acompanharam a versão de 1990, herdeiros do espírito new wave, experimentando um país recém-democratizado.

Enfim, o que parece haver hoje é um maior interesse da produção em tornar tudo ainda mais intensamente dramático, quando o próprio enredo e as falas originais já entregavam essa densidade de maneira tocante em sua objetividade.

Falas do novo Jove foram devidamente ajustadas, mas apenas para que a imagem do herói passe politicamente imaculada. Se, no passado, após o personagem deitar-se com Guta na beira do rio (por iniciativa dele) e ter as roupas roubadas, ele atribuía o ato aos índios, no presente, na mesma situação, mas agora por iniciativa de Guta, imagina que o sumiço das roupas pode ter sido obra de algum bicho.

Ao mesmo tempo, pequenos tesouros da escrita de Benedito Ruy Barbosa foram limados na atual versão. É o caso quando Zé Leôncio responde à pergunta de Filó sobre como ele imagina que seu pai tenha morrido.

Enquanto ouvíamos Cláudio Marzo descrever com comoção e riqueza de detalhes os acontecimentos do acidente que só existiam na sua imaginação, na versão de 2022 Marcos Palmeira responde a mesma pergunta com um lacônico "sei lá".

Não é o mesmo sonoro "sei lá" que o próprio Palmeira cunhou tão bem ao interpretar Tadeu na primeira versão da trama. À época, o jovem ator cresceu em seu personagem à medida que a novela avançava.

O crédito era todo dele, com o seu peão ingênuo de bom coração e com um certo ar bocó, que acabou por lhe emprestar charme. Sutilezas assim são fruto de descobertas de atores inspirados, algo que parecia ocorrer com quase todo o elenco original.

Na pele do atual Zé Leôncio, Palmeira ainda não teve tempo suficiente para tornar seu personagem tão marcante quanto o de Cláudio Marzo.

O mesmo pode ser dito de Alanis Guillen com sua Juma. Na sequência que seria sua primeira prova de fogo na novela —encontrar sua mãe morta—, a atriz nos ofereceu um sofrimento protocolar. É preciso dizer, contudo, que sua personagem talvez seja a mais difícil de recompor entre todas aqui, particularmente com o histórico deixado pela antecessora, Cristiana Oliveira.

Em 1990, o casamento da beleza da atriz com seu talento construiu uma Juma que soava realmente nova, por parecer autenticamente selvagem, incluindo aí os cabelos desgrenhados, a fala mansa e os olhos assustados.

Os acertos da nova versão também merecem ser exaltados. Na primeira fase, eles atenderam pelos nomes de Irandhir Santos, Juliana Paes e Enrique Diaz. O trio recriou novas e enriquecidas personas para o velho Joventino, para Maria Marruá e seu marido Gil.

A muganga de Irandhir encantando um boi marruá não deverá ser esquecida na história da TV brasileira. Já Juliana Paes ofereceu à sua Maria uma rudeza que Cassia Kis não dava conta em 1990.

Entre os novos, Leticia Salles (a jovem Filó) surge em cena suscitando o que diretores costumam dizer sobre a câmera "gostar de uma atriz".

Na fase dois, o Alcides de Juliano Cazarré é um personagem bem-redesenhado. O ator compõe seu peão como um brucutu, fazendo dele alguém insuportável; só que, ao mesmo tempo, empregando um bem-vindo humor que nunca esteve presente no Alcides de Ângelo Antônio.

Elogios também para Murilo Benício, que dá destaque a um Tenório mais assustador (por ser crível) e menos deslocado, como foi o defendido por Antônio Petrin, um dos poucos desacertos na antiga edição, assim como foi destoante o Tibério de Sérgio Reis.

Vale ainda o registro positivo, pelo aspecto técnico e criativo, da encenação com Jesuíta Barbosa sendo picado por uma cobra. É uma autêntica peça de beleza audiovisual sem o uso da palavra.

A cena foi construída para estimular sensações e fazer arregalar os olhos do telespectador —e funciona. Destaca-se tal sequência como exemplo de que a resolução 4K e drones piruetando não são suficientes para recriar um clássico.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.