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Fábio Palácio

BBB, que completa 20 anos, é o mundo neoliberal tirando selfie

Reality antecipou a atmosfera de exposição e subjetivismo exacerbado das redes sociais

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Fábio Palácio

Jornalista, doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP e professor de jornalismo da UFMA (Universidade Federal do Maranhão)

[RESUMO] Lançado há 20 anos, o BBB, principal reality show da TV brasileira, antecipou a atmosfera de exposição e subjetivismo exacerbado das redes sociais, tornando-se um signo dos valores narcísicos que regem a economia neoliberal. Em sua ambiguidade, reivindica o realismo, ao mesmo tempo que se apresenta como jogo de extermínio no qual a audiência se diverte com uma guilhotina simbólica.

"O espetáculo é uma permanente Guerra do Ópio", dizia Guy Debord. A metáfora é duplamente oportuna: ao passo que semantiza com maestria o teor narcotizante de uma sociedade em que tudo assume caráter tecnoestético, ainda guarda o prodígio de evocar a célebre figura do "ópio do povo", um dos diamantes da obra de Marx. A diferença está em que, se este falava de religião, Debord se refere ao mundo espetacularizado em que vivemos.

O recall da metáfora não é casual. A referência se ajusta, com efeito, não apenas ao fenômeno religioso, mas também ao entendimento das contemporâneas formas midiáticas que não deixam, elas próprias, de exalar persistentes odores divinatórios —com efeitos igualmente opiáceos.

Formação do paredão feita em grupos causa intrigas na casa
Participantes do BBB, da TV Globo - Globo/Reprodução

É o que podemos extrair de um exame do Big Brother Brasil. Principal reality show e uma das grandes audiências da televisão brasileira, o BBB acaba de completar 20 anos. Que balanço podemos fazer dessas duas décadas de existência?

Não se trata, aqui, de resgatar o debate empoeirado sobre "efeitos" da TV, pois a verdade é que esse meio, longe de ser "causa" de qualquer fenômeno, é ele mesmo manifestação de uma ordem social profundamente entranhada.

Seria improdutivo, assim, conceber a influência do BBB como mero resultado da ação instrumental dos "meios de comunicação de massa". Importa, para além disso, inquirir as formas pelas quais essa ação de sentido, uma vez deflagrada no espaço comunicacional, e em interação recíproca com ele, constitui-se em poderoso vetor de realização das tendências da sociedade em seu automovimento global.

O gênero chamado reality surge nos Estados Unidos dos anos 1970, mas só se impõe duas décadas depois, no ápice do vendaval neoliberal. Isso não ocorre à toa. O programa é um signo dos valores narcísicos que regem a orquestra da financeirização econômica mundial.

O BBB é, para todos os efeitos, um jogo de extermínio, em que a audiência se diverte com uma guilhotina simbólica. Os participantes devem "vencer a qualquer custo", como, aliás, sugere a música-tema do programa, interpretada pelo cantor Paulo Ricardo: "O que você faria? Aonde iria chegar?".

A pergunta retórica reflete o vale-tudo ferino da luta pela sobrevivência. O programa glamouriza, a golpes de edição e efeitos visuais, as tendências ao darwinismo social em que se ancora o neoliberalismo. É o mundo financeirizado tirando aquele self.

Os realities abrigam uma curiosa ambiguidade. Reivindicam o realismo nos termos de sua própria definição como gênero. Ao mesmo tempo, apresentam-se como simples aparência, como um mundo à parte feito para ser contemplado. Afinal, "tudo não passa de um jogo".

Se, contudo, não é a "pura realidade", o programa está longe de ser mera ficção. É o retrato de um mundo que se aliena de si para apresentar-se como "não realidade". Esse "falso real", porém, não se diferencia do mundo que pressupõe e cujas leis reitera. Nas palavras do Hegel da "Fenomenologia", "o falso é um momento da verdade não mais como falso". Estamos diante daquele tipo de fantasia do olhar que repõe a realidade da qual, não obstante, proclama se afastar.

Se o espetáculo midiático se apresenta como poder à parte é porque, no mundo em que vivemos, o próprio trabalho, fonte última dos poderes humanos, se desvinculou dos indivíduos, sob a forma das mercadorias, e se sobrepôs a eles. Nessa sociedade reificada, em que os sujeitos são objetificados enquanto os objetos assumem propriedades humanas (ou extra-humanas), o trabalho deixou de servir ao homem. Agora é este que serve ao trabalho.

Essa coisificação do ser humano engendra um mundo de formas aparentes, em que a falsificação se impõe como regra. Não surpreende que o BBB, embora anterior à web 2.0, já trouxesse consigo os componentes de uma atmosfera que costuma ser associada à irrupção das redes sociais. Vinte anos atrás já estava tudo ali: cisão entre racionalidade e afetos, vida privada sobreposta à pública, subjetivismo exacerbado e outros componentes que ajudaram a configurar a crise contemporânea da esfera pública.

Programas como o BBB celebram a (ir)racionalidade do sistema. Ocorre que, na cultura de massa, o trabalho se reflete como não trabalho. Seria ilusório pensar que a mercadoria interpela o trabalhador apenas no momento de sua produção. Ela o faz também na "livre fruição". É quando a produção alienada dá as mãos ao consumo alienado, completando-se o circuito da reificação.

Em outras palavras, o modo como as pessoas empregam seu tempo fora do trabalho diz muito sobre o caráter do próprio trabalho. Na sociedade em que vivemos, nem mesmo o tempo livre está liberado da racionalidade produtiva: o lazer é o mesmo trabalho a repor suas condições alienadas, ainda que sob uma aparência de "livre escolha".

Esta é, aliás, a maior de todas as aparências do BBB: a da "escolha racional", que oculta, no entanto, a mais completa irracionalidade. A participação maciça nas definições do programa, por meio do voto para eliminar concorrentes, é uma "livre" seleção que de livre não tem nada. Representa a sujeição a um sistema de escolhas predeterminadas.

Theodor Adorno e Max Horkheimer não nos deixam errar quando dizem que, na indústria cultural, a aparência de diversidade e escolha é "a troca de vestimentas do sempre igual; a variedade como um esqueleto que conhece tão poucas mudanças quanto a própria motivação do lucro".

Ali, de fato, tudo se transforma em mercadoria: intrigas, humilhações, imposturas, intrujices, maquinações e, sobretudo, os próprios participantes, cujo modo de atividade reproduz as tendências da desregulamentação do trabalho sob o neoliberalismo, com sua "gestão flexível".

O BBB é, assim, um jogo tautológico. O que realiza, ao final, é sempre aquilo que propôs como princípio: a ideia de uma natureza humana torpe e egoísta. Ideia que, a cada edição, se oferece como hipótese, ainda que negá-la não seja uma opção. Embora o programa exiba um semblante de diálogo, dos participantes entre si e com o público, seu caráter é de fato monológico. Se algum diálogo existe, é apenas o "espelho, espelho meu" com que a forma-mercadoria faz seu autoelogio.

O programa possui a aura própria de tudo o que se sacraliza. Sabemos que a divisão do trabalho e a irrupção das classes sociais abriram caminho, desde muito cedo, à contemplação sagrada como especialização da vida.

A religião justificava hierarquias sociais projetando-as no além como ordenamentos cósmicos. Essa ordem mística, correspondente aos interesses dos poderosos, operava no plano do imaginário o que o trabalho não podia operar em seus próprios termos: a celebração e fetichização do poder.

O espetáculo moderno, nesse sentido, atualiza dramaticamente o fenômeno religioso. A sociedade da mercadoria traz consigo sua própria religião: a religião do consumo. Não é por acaso que Marx, ao analisar essa sociedade, jamais se furtou ao poder explicativo das alegorias divinatórias para expressar o caráter hipnótico da mercadoria.

Os sacerdotes dessa nova religião são as vedetes. Elas são as encarnações vivas do ser humano total, que vive livremente e age globalmente. A vedete supera as especializações parcelares que geram vidas estilhaçadas. Encarnam a totalidade do trabalho social que se tornou inacessível aos indivíduos. Representam a verdade em um mundo de verdades escassas.

As vedetes do BBB surgem como indivíduos empoderados, no comando de suas decisões e, claro, livres do trabalho alienado. Encarnam seres em completa disponibilidade, eternamente de férias, no pleno desfrute de uma vida opiácea.

Apresentada como ápice da individualidade, a vedete é, contudo, o "não indivíduo", pois não pertence mais a si: renunciou a toda autonomia para tornar-se um modelo de identificação. Estamos diante de pessoas-imagem, ou de imagens que se comportam como pessoas. Pessoas expostas ao voyeurismo geral exatamente como a mercadoria que se exibe na vitrine, sensual e concupiscente, à espera do consumidor para a conjunção libidinal.

Essa "renúncia a si mesmo", que transforma um indivíduo em popstar, pode ser perigosa, como vemos no caso paradigmático do "rei do pop", o multiartista Michael Jackson. Na tentativa de apagar as fronteiras entre o ser humano e o personagem, ele fez de sua pessoa um laboratório de experimentos kitsch. Pagou por isso alto preço e terminou a vida como pálida caricatura de si mesmo. O ópio do espetáculo pode ser fatal.

Mas a alegoria marxiana é muito mais ambivalente do que parece à primeira vista. Basta voltar ao texto original para perceber isso com clareza:

"A religião é o suspiro do ser oprimido, o íntimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real".

Se a "miséria religiosa", além de "expressão da miséria real", é igualmente o "protesto" contra ela, o mesmo podemos dizer do espetáculo midiático. Como a religião, também a cultura de massa não se resume a uma "falsa consciência". Ou melhor: até mesmo para que se imponha como tal, ela precisa debruçar-se sobre ansiedades reais.

Seria fatalista e antidialético pensar que a reificação das relações sociais tem o condão de inviabilizar o desenvolvimento da consciência de uma classe emergente. O pensamento oposicionista sempre reinventa formas de resistência e abre caminho, mesmo em meio à mercantilização das relações sociais e ao empastelamento da cultura.

Nenhuma cultura, nem mesmo a mais absurdamente mercadológica, pode chegar ao grau zero da perda de autenticidade, isolando-se da vida real. A história do BBB prova essa tese. A quinta edição do programa (2005), que lançou nomes como Jean Wyllys e Grazi Massafera, teve a maior audiência já registrada. Após 2008, o programa viveu um período de esgotamento, chegando a 2013 com menos de metade da audiência registrada em 2005.

Com isso, o BBB passou por mudanças. De um lado, houve o aprofundamento de recursos apelativos. De outro, a direção do programa decidiu variar a composição do cast, incluindo personagens ligados a segmentos sub-representados, alguns deles expressando demandas por direitos e reconhecimento, dando vazão a debates em curso na sociedade. Essa tendência atingiu seu ápice na última edição, que, segundo dados do Painel Nacional de Televisão, registrou a melhor média de audiência desde 2010.

Isso mostra que nenhum programa cultural, por mais pasteurizado que seja, pode deixar de refletir, em alguma medida, as tendências da vida comum. O imaginário social pode ser fetichizado e distorcido, mas isso não acontece sem que se forneça um óbolo em paga à cultura genuína do povo.

Valha-nos, neste ponto, a advertência de Fredric Jameson: "As obras de cultura de massa, mesmo que sua função se encontre na legitimação da ordem existente [...], não podem cumprir sua tarefa sem desviar a favor dessa última as mais profundas e fundamentais esperanças e fantasias da coletividade".

É verdade que a cultura reificada não toca nas contradições e inquietudes sociais senão para resolvê-las de forma ilusória, assimilando-as a técnicas de marketing psicológico, compondo estruturas compensatórias, projetando miragens de harmonia social —ou plantando a desarmonia real. Porém, assim como o trabalho alienado ainda é trabalho, a cultura alienada ainda é cultura. Aliena-se de si dizendo "adeus" quando deveria dizer "até logo".

Assim como as religiões recalcam ao mesmo tempo que revelam e como não podem oferecer soluções imaginárias sem que se debrucem sobre problemas reais, o mesmo ocorre com o contemporâneo espetáculo midiático.

Em um mundo que se diz prenhe de racionalidade, mas vive embriagado de encantamento, o Big Brother também pode ser definido como "alma de situações sem alma", "expressão da miséria real" que pode, por vezes e obliquamente, encarnar o "protesto" contra essa mesma miséria. Como religião de nosso tempo, o BBB é um ópio pós-moderno.

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