Fui vítima de processo hostil e esperava ajuda do Brasil, diz Carlos Ghosn

Ex-Nissan diz que fugiu de perseguição política, além de reclamar de pouco apoio do Brasil

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Beirute

Pela primeira vez após fugir para o Líbano, Carlos Ghosn, ex-presidente da Nissan e da Renault, se defendeu publicamente das acusações feitas pela Justiça japonesa.

O executivo disse agora que vai provar sua inocência, alegou ser vítima de um complô, negou que possa assumir algum cargo público no governo libanês e reclamou de ter recebido pouco apoio do Brasil.

Em entrevista à imprensa em Beirute, que durou mais de duas horas, disse que as acusações são fantasiosas, que está aliviado por retornar ao convívio da família e reiterou não estar fugindo da Justiça.

“Eu não estou acima da lei. Não fugi da Justiça. Fugi da injustiça e da perseguição política”, alegou, focando as críticas na suposta falta de independência do Judiciário japonês.

O ex-presidente da Nissan, Carlos Ghosn, durante primeira entrevista após fuga para o Líbano
O ex-presidente da Nissan, Carlos Ghosn, durante primeira entrevista após fuga para o Líbano - Joseph Eid/AFP

Ele afirma que um complô foi criado para derrubá-lo do comando do conglomerado Renault-Nissan-Mitsubishi e impedir a convergência da montadora francesa com o grupo ítalo-americano Fiat-Chrysler.

A operação acabou frustrada e foi levada a cabo pela concorrente francesa PSA (Peugeot, Citroën, DS e Opel).

Ghosn demonstrou indignação com o fracasso da negociação que liderava, apontando-a como um exemplo de como a gestão da aliança não estaria nas melhores mãos depois de sua prisão e demissão.

No período em que esteve preso em Tóquio, perdeu o comando do conselho de administração da Nissan, foi demitido do colegiado da Mitsubishi e deixou a direção da Renault.

Ghosn foi preso em 19 de novembro de 2018 por supostas violações financeiras que envolveriam sonegação fiscal e uso de ativos da Nissan para fins pessoais. Ele e outro diretor da montadora, Greg Kelly, foram alvos de uma investigação interna por meses, segundo a companhia.

“Eu era um alvo fácil [no Japão], estava na Renault [uma empresa francesa] e eu era estrangeiro”, disse.

O executivo ficou cerca de três meses preso, foi solto sob fiança, preso novamente e saiu sob nova fiança. No final de 2019, fugiu para o Líbano.

Apoiado em documentos assinados por outros executivos da Nissan, sustentou que todos os seus atos eram legais e apoiados por decisões tomadas dentro da empresa.

A iniciativa de investigá-lo e derrubá-lo do poder, disse, teria ocorrido em razão do declínio da performance da Nissan a partir de 2015, após sua saída do comando da companhia.

Outro fator que teria pesado no que chamou de “perseguição” teria sido a desconfiança causada no Japão por uma legislação na França que deu direito de voto duplo ao Estado francês, maior acionista da Renault —e de forma indireta da aliança com os japoneses—, ao lado da Nissan.

Na companhia japonesa pesava a suspeita de que Ghosn trabalhava pela fusão dos dois gigantes, o que ele negou.

O executivo disse ser muito cedo para falar de um retorno, mas deu mostras de que continua interessado no jogo das empresas privadas.

Quando lhe foi perguntado se sua fuga representava também a busca de uma “volta por cima”, deu a entender que sim. “É muito cedo para falar em come back [retorno, na tradução do inglês]. Preciso ganhar força, passar tempo com minha família”, disse. “Isso não significa que não vou ter planos.”

Claudine Bichara, irmã de Ghosn, disse que o mais imediato é que ele trabalhe para limpar o nome e reforçar as críticas ao Judiciário japonês.

Após sua detenção, começaram a pipocar na imprensa possíveis abusos que ele teria cometido, como ter gasto US$ 18 milhões de uma subsidiária da Nissan em imóveis de luxo no Rio de Janeiro e em Beirute, por meio de  uma companhia holandesa criada em 2010 com objetivo oficial de financiamento a startups.

“As pessoas pensam que isso tudo pode acontecer sem nenhum controle? Tudo isso foi submetido a protocolos e controles”, disse o executivo.

A empresa também teria sido usada para realizar pagamentos à irmã mais velha de Ghosn por trabalhos de consultoria, como uma comissão de US$ 60 mil por assessoria sobre habitação no Rio. Mas a Nissan não encontrou provas de que ela tivesse de fato executado o trabalho, segundo o jornal The Wall Street Journal.

Ghosn ainda teria transferido perdas em investimentos particulares para a montadora. A Nissan também suspeitava das relações dele com políticos e empresários brasileiros acusados de receber propinas e afirmou que Carlos Ghosn declarou remuneração pessoal inferior à real.

A Promotoria japonesa o acusa de transferir de forma ilícita US$ 14,7 milhões da conta de uma afiliada da Nissan para um conhecido residente na Arábia Saudita.

A caixa preta do equipamento de áudio deixada no aeroporto de Ataturk, em Istambul, dentro da qual Carlos Ghosn teria fugido do Japão
A caixa preta do equipamento de áudio deixada no aeroporto de Ataturk, em Istambul, dentro da qual Carlos Ghosn teria fugido do Japão - Reprodução

Já a Renault informou que a Procuradoria de Nanterre, na França, investigo o financiamento do casamento de Ghosn com sua mulher, Carole, no castelo de Versalhes, em 2016, que teria sido pago por um um acordo da montadora com os gestores do palácio.

Segundo ele, porém, o caso é de uma noite de gala em 9 de março de 2014, dia em que completava 60 anos. E não era uma festa para si mesmo, mas para comemorar os 15 anos da aliança Renault-Nissan.

Segundo Ghosn, o uso do palácio teria sido uma “gentileza comercial” oferecida pela diretora da instituição, Catherine Pegard, à empresa, em contrapartida pelo mecenato da Renault na reforma de trechos do prédio histórico.

Em outra auditoria, a Renault concluiu que ele deixou de justificar R$ 49,5 milhões em gastos com viagens pessoais em aviões da companhia, compra de relógio de luxo, idas ao Festival de Cannes, e doações a entidades sem fim lucrativo cujo propósito não está claro.

Esse estilo de vida luxuoso levado teria sido o estopim para a frustração e descontentamento que vinham se acumulando havia muito tempo na Nissan em relação ao executivo.

Ghosn sempre negou as acusações. Segundo ele, em “nenhum país democrático” a acusação que sofre no Japão teria sido mantida pelo Ministério Público, já que segundo ele os valores envolvidos jamais pararam em suas contas.

“Isso é político. Houve muitas tentativas de apresentar esse caso como um caso comum, mas não é”, disse. “Eu sou inocente de todas as acusações, e agora posso provar. Tenho muitos documentos, e há muitos mais por vir. Eu tenho de limpar meu nome.”

Ele se esquivou de todas as perguntas sobre como foi sua fuga para o Líbano. “Foi a decisão mais difícil da minha vida”. E disse que escolheu o Líbano por questões de logística.

“O problema é que, para sair do Japão e ir para o Brasil, é preciso parar em algum lugar. Eu não vou mais fazer comentários sobre isso”, afirmou, quando lhe foi perguntado sobre o motivo para não ir para o Brasil.

Ghosn, que nasceu em Rondônia e também tem cidadanias francesa e libanesa, elogiou o apoio do cônsul do Brasil enquanto esteve no Japão —“cuidou de mim num momento muito difícil”—, mas lamentou que Brasília não tenha atuado em sua defesa. “Esperava um pouco mais de ajuda de parte do governo brasileiro, o que não aconteceu.”

Uma das queixas da família é que Jair Bolsonaro não tratou de seu caso quando se encontrou com o primeiro-ministro Shinzo Abe durante visita oficial ao Japão.

A irmã Claudine foi mais incisiva. “O Brasil fez de conta que não era com ele. Preferiu se abster e não correr riscos, ao contrário do que aconteceu no Líbano.”

As primeiras declarações de Ghosn em mais de dois anos ocorreram em entrevista a jornalistas de todo o mundo —mas com poucos japoneses, barrados por supostamente serem “enviesados” em favor dos procuradores do Japão.

Ghosn chegou pouco antes do horário previsto, às 15h, e anunciou que falaria em inglês, francês e árabe —sem mencionar o Brasil, em um primeiro momento. Mas respondeu aos jornalistas brasileiros em português.

Ele está em Beirute com a esposa em uma casa da família. Alegou estar pronto para ir aos tribunais, mas não deu sinais de que pretende deixar o país. 

Ghosn descartou os rumores de que possa assumir um cargo político no Líbano —seu nome foi evocado como possível ministro em um governo de perfil técnico, em meio à crise econômica e política que o Líbano enfrenta.

“Se receber um pedido para colocar minha experiência a serviço do Líbano, vou fazer. Mas não sou um político”, disse, sugerindo que poderia ser uma espécie de conselheiro.

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