O poder do 'market design' para criar e refinar mercados

Sistema oferece novas teorias, algoritmos, provas e exemplos para ajudar autoridades a implementar soluções efetivas

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Paul Milgrom

Ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2020, professor de humanidades e ciências na Universidade Stanford e cofundador e chairman da Auctionomics

Silvia Console Battilana

Cofundadora e presidente-executiva da Auctionomics e Jovem Líder Global do Fórum Econômico Mundial

Em 2010, os Estados Unidos estavam enfrentando um problema desafiador de alocação de recursos. A procura por um recurso vital para a vida cotidiana estava em alta, mas o suprimento disponível estava sendo usado por incumbentes que haviam construído um setor econômico importante em torno dele.

Além disso, transferências incrementais para novos usos eram impossíveis. Será que novas regras teriam a capacidade de aliviar a escassez crescente e ao mesmo tempo respeitar os direitos dos usuários existentes e possibilitar uma realocação voluntária entre múltiplas partes?

O recurso não era a água, mas o espectro de rádio —as frequências eletromagnéticas usadas para comunicações de telefonia móvel, transmissão de dados para smartphones e comunicação de emergência.

A demanda pelo espectro havia crescido, com o número cada vez maior de pessoas que recorriam a streaming de filmes, videoconferências e apps em aparelhos móveis. Mas porque o espectro que teria sido ideal para os smartphones estava ocupado por um setor fragmentado de emissoras de televisão, não havia banda suficiente para o uso em comunicação móvel.

Códigos de programação; market design oferece teorias, algoritmos, provas e exemplos para ajudar autoridades a implementar soluções - Reprodução

Nossa empresa, a Auctionomics, assessorou o Congresso e a Comissão Federal de Comunicações (FCC) dos Estados Unidos na solução do problema, por meio de uma série de mudanças que culminaram no Broadcast Incentive Auction.

Frequências que estavam sendo usadas para o fim menos valioso de transmissões televisivas seriam adquiridas e revendidas para aplicação em celulares, e os incumbentes que desejassem manter o uso tradicional desse recurso seriam generosamente protegidos.

O leilão em questão, realizado em 2016 e 2017, resultou na aquisição de uma grande quantidade de frequências eletromagnéticas, realocando-as para uso de maior valor, e arrecadou US$ 19 bilhões (quase R$ 99 bilhões) em faturamento bruto.

O sucesso dessa iniciativa demonstra o poder e o potencial do “market design” para criar e refinar mercados e Bolsas a fim de melhorar a alocação de recursos escassos.

O leilão foi projetado de forma a se integrar a importantes mudanças legislativas que tornavam os direitos a frequências mais negociáveis e ao mesmo tempo permitiam que os incumbentes continuassem a operá-las com pouco ou nenhum desordenamento.

Essa abordagem é amplamente aplicável, especialmente na gestão de recursos ambientais. Novos casos de escassez exigirão realocações de recursos que dediquem atenção estreita aos desafios sociais e ambientais envolvidos e aos interesses dos usuários existentes, que resistirão a mudanças que considerem prejudiciais.

O “market design”, que emergiu como um importante subcampo de pesquisa da Economia nos últimos 25 anos, oferece novas teorias econômicas, algoritmos, provas e exemplos correlatos para ajudar as autoridades a implementar soluções efetivas.

Os métodos de “market design” já resolveram diversos problemas cotidianos importantes de equiparação entre recursos e usuários. As aplicações incluem publicidade na internet (para garantir que os anúncios sejam apropriados e sirvam aos interesses do leitor), transplante de órgãos (encontrar um doador compatível para uma pessoa querida), busca de residências médicas (encontrar empregos para médicos recém-formados) e doações assistenciais de alimentos (estocar o banco de alimentos local com os itens mais necessários).

As autoridades podem adaptar a mesma teoria e prática a problemas de alocação novos e em evolução. Por exemplo, o “market design” pode enfrentar problemas de escassez de vacina para a Covid-19 ao permitir trocas de ingredientes e suprimentos (tais como tubos, filtros e recipientes farmacêuticos) necessários para a produção de vacinas.

Da mesma forma, instrumentos financeiros tais como criptomoedas introduziram designs descentralizados com transações plenamente automatizadas.

Os leilões de frequências precisarão mudar de novo para acomodar as tecnologias 5G e apoiar aplicações de inteligência artificial e de internet das coisas em pequena escala.

E o sucesso dos programas de mercado para venda e compra de licenças —de emissões de poluentes, direitos de pesca e outros bens ambientais— dependerá da competência das autoridades regulatórias na definição dos produtos a serem trocados e do estabelecimento de regras que encorajem a participação e ao mesmo tempo promovam a realização dos objetivos sociais.

O “market design” também desempenhará papel crítico na solução do problema da alocação de água.
Muitos dos direitos mundiais existentes quanto à água potável —tanto água de superfície quanto do lençol freático— já foram concedidos e são considerados propriedade inerente de cidades, agricultores e usuários industriais. Em alguns casos, cada transação individual desses direitos requer aprovação governamental; outras jurisdições proíbem inteiramente esse tipo de transação.

Essas restrições e regras históricas levaram a alocações altamente ineficientes. Pode não haver água disponível para cidades que precisam de quantidades maiores à medida que crescem, ainda que os usos urbanos e residenciais sejam cem vezes mais úteis que os usos rurais que suplantariam.

Certas empresas industriais cujos direitos se baseiam em uso histórico podem ter um incentivo para usar água demais, mesmo durante secas, a fim de reter seus direitos a alocações futuras.

Nos casos em que a negociação de direitos é restrita ou proibida, a sinalização precária de preços dificulta até mesmo avaliar que usos são mais valiosos. E a demanda por água crescerá e mudará à medida que a mudança no clima continua a alterar os padrões históricos de uso.

O sucesso do leilão de frequências de rádio nos EUA aponta para uma solução. Em lugar de revogar os direitos dos incumbentes ao espectro de forma unilateral, o Congresso os redefiniu de uma maneira que tornou possível e simples negociá-los, e aí permitiu que as emissoras de TV decidissem se queriam manter seus usos anteriores ou se recusar a participar do leilão.

Os direitos que foram vendidos foram reconfigurados de forma que os tornou adequados a novos usos e negociação eficiente, enquanto aqueles que não o foram continuaram adequados aos propósitos existentes.

Uma reorganização semelhante dos direitos sobre a água pode proteger os usuários existentes que não desejem vender, e ao mesmo tempo criar direitos negociáveis para outros, que permitiriam que a água fluísse para seu uso mais valioso.

Qualquer tentativa de compelir todos os usuários atuais a participar provavelmente seria bloqueada por oposição legal e política, mas um mercado plenamente voluntário baseado nos mesmos princípios do que foi criado para o espectro de rádio poderia acomodar as reclamações daqueles que resistem, e ao mesmo tempo melhorar drasticamente a alocação de direitos de água.

Além disso, as autoridades poderiam usar parte do valor liberado pela realocação de forma a compensar desigualdades —por exemplo ao conceder créditos a cidades rurais ou pequenos produtores agrícolas para que eles recebam os recursos hídricos de que necessitam.

Alocar água eficientemente e de modo justo vai exigir inovação, colaboração e regulamentação. Nesse e em outros domínios, o “market design” coloca a teoria econômica prática a serviço do estabelecimento de direitos e da introdução de regras e algoritmos efetivos. Dessa forma, podemos acomodar diversos participantes do mercado, colher os frutos das novas tecnologias e maximizar o bem público.

Este texto faz parte da série de artigos de opinião exclusivos, assinados por jovens líderes globais selecionados pelo Fórum Econômico Mundial, com propostas concretas e pioneiras para uma nova agenda para o desenvolvimento até 2030. O projeto é promovido pelo Fórum Econômico Mundial, com curadoria de Rodrigo Tavares, e tem a Folha como parceira exclusiva no Brasil.

Project Syndicate, tradução 
de Paulo Migliacci

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