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Brasil não tem lei para punir à altura caso Americanas, diz ex-procurador

Rodrigo de Grandis diz não haver previsão legal de crime específico para grandes fraudes corporativas

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São Paulo

As investigações sobre a fraude bilionária das Americanas ainda estão longe de terminar, mas o ex-procurador Rodrigo de Grandis já arrisca um prognóstico: não haverá punições à altura dos crimes que possam ter sido cometidos.

"As pessoas vão ser punidas de maneira parcial. Não vai ser compatível com o tamanho da fraude", diz.

Não por leniência da Justiça ou do MPF (Ministério Público Federal), mas porque não existe, na lei brasileira, um crime específico para casos como o das Americanas.

"A gente tem um Código Penal de 1940. Tem um monte de crime patrimonial antigo, pensado para uma realidade completamente diferente. Não foram pensados para as grandes fraudes corporativas", diz de Grandis, que acaba de deixar o MPF após quase 20 anos.

Homem branco de terno e camisa, sem gravata, em frente a uma estante de livros jurídicos
O ex-procurador Rodrigo de Grandis - Danilo Verpa/Folhapress

O que se faz nesses casos, afirma, é aplicar outros crimes, que tangenciam o delito. O problema é que as penas tendem a ser baixas, incapazes de inibir o comportamento.

"Elas [as penas] não são nada suficientes. O criminoso de colarinho-branco, para utilizar a expressão sociológica, faz uma relação de custo-benefício e vê que as penas são pequenas", afirma de Grandis, que também é professor universitário.

Ele sugere que o Legislativo aproveite o momento para reformular o sistema penal, introduzindo leis específicas para esse tipo de fraude corporativa. Uma ideia, diz, é o crime de infidelidade patrimonial, existente em outros países e tema de seu doutorado na USP.

Como é possível uma fraude tão grande como a da Americanas passar batido pelas autoridades por tanto tempo?
A gente ainda está em fase de investigação, então tudo é elucubração. Mas tudo indica que houve a participação de várias pessoas em diversos setores. A questão é saber se esse auxílio se deu dolosamente, ou seja, de forma deliberada, ou de forma culposa, por negligência na fiscalização.

Considerando o que já foi publicado, para ter chegado a esse ponto, houve, no mínimo, omissão de muita gente. Além disso, uma coisa que faz parte de qualquer fraude corporativa é induzir em erro as pessoas que devem fiscalizar.

É factível que o Conselho de Administração, por exemplo, não soubesse da fraude?
Tem que ter sido uma fraude muito bem feita para que o Conselho de Administração não a detectasse. Existem vários pontos de investigação e eventual atribuição de responsabilidade: bancos, Conselho de Administração, investidores, empresas de auditoria.

Fala-se muito dos três sócios de referência.
A investigação não pode descartar ninguém. Agora, tem que ser, e me parece que isso está ocorrendo, uma investigação de união de esforços: MPF, Polícia Federal, CVM [Comissão de Valores Mobiliários], Banco Central. Esse tipo de união tem produzido bons resultados.

Há alguma falha na legislação que tenha permitido ou facilitado essa fraude?
Acho que a legislação das S.A. funciona bem. A CVM também tem uma legislação que me parece boa. O que falta em relação à CVM, olhando de fora, é o que falta a qualquer órgão público de enforcement [aplicação da lei] no Brasil: falta gente, falta dinheiro.

Agora, do ponto de vista jurídico-penal, falta uma série de coisas, a começar por crimes que tenham condições de fazer frente a esses comportamentos. A gente tem um Código Penal de 1940. Tem um monte de crime patrimonial antigo, pensado para uma realidade completamente diferente. Não foram pensados para as grandes fraudes corporativas.

O Brasil tem um déficit legislativo enorme. É preciso fazer uma reformulação do sistema penal para reprimir esse tipo de comportamento. Hoje não existe um crime específico para a Americanas, para a fraude efetivamente relacionada à administração.

As penas existentes e em tese aplicáveis a esse tipo de caso são suficientes para dissuadir criminosos?
Elas não são nada suficientes. O criminoso de colarinho-branco, para utilizar a expressão sociológica, faz uma relação de custo-benefício e vê que as penas são pequenas. Se ele for primário, pode fazer um acordo de não persecução penal.

Hoje não existem penas para esse tipo de crime que efetivamente possam inibir o comportamento. Por exemplo, poderiam existir penas de inabilitação: o sujeito que comete esse crime fica inabilitado a exercer algum cargo numa sociedade anônima, um cargo de diretor, por cinco anos, por dez anos.

Estou certo de achar que, além disso, não são comuns condenações por grandes crimes financeiros no Brasil?
Acho que sim. Mas é difícil falar, porque às vezes é só uma percepção de natureza pessoal. Mas a gente tem alguns gargalos importantes em relação aos crimes corporativos.

Porque a prescrição –ou seja, o tempo que o Estado tem para punir aquela pessoa— é aferida com base na pena máxima. Como as penas não são altas, a prescrição é baixa. E, nos crimes corporativos, a defesa sempre é muito bem elaborada, são ótimos advogados, que vão a todas as instâncias etc. Então esses crimes muitas vezes acabam prescrevendo.

A investigação também demora, porque é uma investigação complexa. É uma investigação de natureza transversal, porque tem que conhecer uma prova contábil, tem que saber analisar um balanço, tem que conhecer uma operação financeira. Muitas vezes o membro do Ministério Público, o juiz ou até mesmo o advogado não conhece isso e vai precisar de outras áreas, vai fazer perícia, o que também toma tempo.

Isso explica por que a gente vê com muita frequência pessoas pretas e pobres sendo presas por roubar chocolate, enquanto criminosos de colarinho-branco...
Completamente. O sistema penal é seletivo. Se você olhar a população carcerária brasileira, você vai ver, como dizia o [criminalista Cláudio] Heleno Fragoso, os três pês: preto, pobre e prostituta.

São crimes patrimoniais, alguns sem violência, em que não se tem os benefícios que um sonegador fiscal teria, por exemplo. E, no caso das pessoas mais pobres, com uma assistência jurídica que não é efetiva. A Defensoria faz um trabalho fantástico, mas também falta gente, faltam recursos.

São fatores que certamente contribuem para uma ideia de impunidade para o criminoso de colarinho-branco. Dos anos 90, dos anos 2000 para cá, mudou muito. As ferramentas mudaram, a compreensão mudou, mas o sistema jurídico continua o mesmo. As leis ainda não são adequadas.

Esse caso das Americanas demonstra claramente que falta um tipo penal que a gente chama normalmente de infidelidade patrimonial, que existe na Alemanha, na Espanha, na Itália. No Brasil, isso não existe.

E é curioso, porque o Brasil, sobretudo para fins penais, gosta de olhar para fora. O importado sempre é algo que chama a atenção do legislador, mesmo sem uma análise sobre a necessidade do crime. No caso da infidelidade patrimonial, ninguém olhou para fora. E hoje é o crime mais importante na Europa.

Considerando a realidade brasileira, quais são as possibilidades de responsabilização nesse caso?
Eu posso falar em tese. A responsabilidade civil ocorre por indenização, ressarcimento. Mas, pelo que está se desenhando, isso vai ficar no âmbito dos acordos.

No direito penal, existem alguns crimes que vão tangenciar o problema, vão resolver à míngua de um crime melhor, digamos assim. Então a gente pode falar do crime de "insider trading", do estelionato, da falsificação documental, da falsidade ideológica, de um crime financeiro do artigo 6º da lei 7.492/86 [induzir ou manter em erro sócio, investidor ou repartição pública], que se discute se cabe nesse caso.

Mas, considerando a magnitude desse fato, há que se concluir que, falando em tese, as pessoas vão ser punidas de maneira parcial. Não vai ser compatível com o tamanho da fraude. Porque são penas de quatro, cinco anos.

Talvez o Brasil devesse aproveitar esse momento para discutir uma reformulação do sistema penal. Essa CPI das Americanas, por exemplo, tem o seu escopo, a sua finalidade, mas, se ela saísse com um projeto de lei para reformulação de crimes patrimoniais e chamasse a academia, fizesse uma comissão que debatesse o assunto, seria fantástico.

É possível falar em associação criminosa?
É possível, não dá para descartar. Organização criminosa também está sendo discutido, mas exige outros requisitos.

E quanto às pessoas lesadas pela fraude?
Elas vão ter que buscar o Judiciário em relação à responsabilidade civil, buscar indenizações.

O que eu acho interessante é que o Bradesco entrou com uma ação e obteve os emails da empresa. Todo esse material probatório vai poder ser utilizado na investigação. Acredito que o Ministério Público vai pedir o compartilhamento disso. Então o material que já está sendo produzido nas questões civis, o material de CPI, tudo isso uma hora chega às mãos do Ministério Público.


RAIO-X

Rodrigo de Grandis, 46

Mestre e doutor em direito penal pela USP, é professor da FGV Direito SP e da PUC-SP. Foi membro do Ministério Público Federal de 2004 a 2023, com atuação preponderante em crimes contra o sistema financeiro nacional e lavagem de ativos ilícitos

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