Pandemia acelera mercado de negócios de impacto socioambiental

Número de negócios voltados para solução de problemas cresceu durante a crise, mostra levantamento

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São Paulo

A pandemia apenas escancarou a desigualdade no Brasil e abriu portas para pequenas e médias empresas que têm como principal objetivo a redução de problemas sociais ou ambientais sem perder de vista a busca pelo lucro.

Chamados de negócios de impacto socioambientais, que são diferentes das ONGs, os empreendimentos se mostraram mais resilientes porque costumam atuar diretamente com as camadas da população que foram mais atingidas pela crise sanitária.

"Foi surpreendente que negócios de impacto tenham sobrevivido bem à pandemia. Isso aconteceu porque são empresas que atuam na ponta de problemas, por exemplo, como baixa renda ou dentro de comunidades", afirma Mariana Fonseca, cofundadora do Pipe.Labo, centro de estudos e conhecimento aplicado sobre o mercado de impacto no Brasil.

Cíntia Maria Felix, fundadora da marca Az Marias, em sua casa, em SP - Keiny Andrade/Folhapress

"De repente, na crise, começaram a ter mais oportunidades de mostrar serviço."

Mapeamento do setor feito pelo Pipe.Labo e divulgado no ano passado contabilizou 1.300 empresas brasileiras que se declaram negócio de impacto —aumento de 29,7% em relação ao levantamento de 2019, que computou 1.002 negócios.

De acordo com Fonseca, a maior difusão do conceito e o aumento da importância da agenda ESG (governança ambiental, social e corporativa, em português) são fatores que permitiram que "a bolha do impacto estourasse".

Fonseca diz que, antes, os empreendedores focados em resolver problemas sociais e ambientais dialogavam com um mercado de nicho, de poucas marcas e investidores. Hoje existem milhares de organizações que compreendem a urgência e o potencial desse tipo de iniciativa.

No Brasil, a maior parte dos empreendedores de impacto está concentrada na região Sudeste —40% são do estado de São Paulo, segundo o mapeamento do Pipe.Labo.

Com sede no Jardim Peri, zona norte da capital paulista, a Pericred trabalha com crédito para pessoas negativadas, de baixa renda e beneficiários do INSS e se declara como um negócio inclusivo e de impacto. O fundador da empresa, Alan Rodrigo de Souza, 28, diz que a Pericred oferece serviços para pessoas que muitas vezes são ignoradas e até discriminadas pelas instituições financeiras tradicionais.

A startup foi inaugurada em 2019 após o empreendedor, ao lado da mulher e sócia, Emilly Caroline Julião, 26, enxergar oportunidade em um mercado que, segundo ele, ainda é pouco atendido. "O banco mais próximo da gente fica a 20 minutos de condução", diz.

A Pericred tem parceria com bancos para a intermediação de produtos e serviços financeiros que vão de empréstimos a auxílio na abertura de contas digitais.

"Nós evitamos que pessoas peguem dinheiro, por exemplo, com agiota. Já vi gente recorrer a empréstimos para comer ou comprar gás. Depois, sem acompanhamento e com juros altos, a situação vira uma bola de neve", afirma Souza.

O empresário avalia que, além de negociar crédito mais acessível, a companhia atua de forma educativa, orientando clientes na renegociação de dívidas e na gestão financeira. Segundo ele, mesmo quem está com o nome sujo pode recorrer a empréstimos.

"Nesse caso é possível fazer empréstimo na conta de luz ou usando o celular como garantia", diz Souza.

Durante a pandemia, a Pericred quintuplicou seu tamanho, segundo o fundador. A empresa tem faturamento médio mensal de R$ 15 mil —a cada transação financeira é cobrada uma taxa. Hoje cerca de 500 pessoas são atendidas de forma presencial todos os meses, afirma Souza.

Um negócio de impacto precisa ter a intenção de resolver ao menos parte de um problema social ou ambiental e ter a solução como seu objetivo principal. Não basta ter uma iniciativa pontual de responsabilidade ou voluntariado.

"No limite, podemos imaginar um fabricante de armas com área de sustentabilidade. Obviamente a empresa não será considerada de impacto socioambiental", diz Edgard Barki, coordenador do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da FGV.

As empresas de impacto se propõem a criar benefícios não apenas para seus fundadores ou acionistas, mas para todas as partes envolvidas no negócio, que pode contribuir para a construção de uma economia mais inclusiva e sustentável. Elas precisam, ainda, de estrutura similar à de outras empresas, com planejamento e faturamento.

"Os negócios de impacto estão se fortalecendo porque hoje se percebe que recursos exclusivamente filantrópicos não são suficientes para transformação em escala", afirma Fernanda Bombardi, gerente-executiva do ICE (Instituto de Cidadania Empresarial).

Segundo Bombardi, o mercado de impacto cresceu principalmente nos últimos dez anos no Brasil. "Mas os negócios não surgem para substituir auxílios governamentais ou atividades filantrópicas, e sim para somar e ser capaz de mobilizar outro tipo de capital, muito mais tradicional."

Ricardo Ramos, 37, cofundador da Gove, plataforma de inteligência para gestão de cidades, não revela o faturamento da empresa, mas diz que estar inserido na lógica do mercado é fundamental para que a companhia transforme a vida das pessoas e, ao mesmo tempo, seja competitiva.

"Preciso gerar lucro porque quero ter os melhores profissionais, oferecer remunerações adequadas e competir com outras empresas", diz.

Localizada na cidade de São Paulo e com 40 funcionários, a empresa desenvolveu um software para ajudar gestores públicos de municípios a identificar oportunidades de atuação e implementar melhorias nas receitas e despesas.

Segundo Ramos, a ferramenta compila dados e auxilia na reestruturação e tomada de decisões. Ele diz que a empresa provoca impacto social porque, de posse de informações mais qualificadas, governantes implementam políticas mais eficientes que melhoram o dia a dia da população.

Não há exigência de certificação para que uma empresa seja classificada como negócio de impacto e muitos empreendedores não sabem que estão inseridos na categoria, diz Bombardi, do ICE. As empresas podem atuar na resolução de questões sociais ou ambientais e, em alguns casos, trabalham nas duas frentes.

A empresa de moda Az Marias, de São Paulo, trabalha na transformação de resíduos têxteis, que seriam descartados, em peças de roupas. Também promove oficinas educativas gratuitas que ensinam as costureiras a precificar o serviço da mão de obra.

Mais de 50 pessoas já fizeram as oficinas, que são abertas, segundo Cíntia Maria Felix, 35, fundadora da Az Marias. Ela diz que o esforço educativo é importante para combater o trabalho análogo à escravidão. A empresa conta com cinco costureiras autônomas.

"Sempre fui uma pessoa chão de fábrica e me perguntava como é possível sobreviver ganhando tão pouco. Depois vi que o preço das peças nas lojas era muito discrepante ao valor pago às costureiras", diz Felix.

A empresária conta que conversa individualmente com cada costureira para entender seu custo de vida e chegar a um valor justo pelo tempo de serviço, mesmo diminuindo a margem de lucro.

"Em outros lugares as costureiras recebiam de R$ 0,50 a R$ 0,75 por cada peça de prendedor de cabelo, por exemplo. Nós já pagamos R$ 2,50, que é um valor que achamos mais justo e que faz diferença para as trabalhadoras", afirma ela.

Mariana Fonseca, do Pipe.Labo, afirma que negócios de impacto se fortalecem porque hoje já conseguem competir com as empresas tradicionais. Ao mesmo tempo, a pandemia acelerou a tendência no mercado de trabalho que faz as pessoas buscarem mais sentido nas atividades cotidianas, o que leva mais empreendedores aos negócios de impacto.

Barki, da FGV, acredita que a consolidação do mercado é um caminho sem volta. "Consumidores e fornecedores reconhecem que hoje as empresas precisam pensar mais em ações holísticas, e não apenas no próprio umbigo. Então tem muita gente voltada ao desenvolvimento de negócio que não seja predatório, mas competitivo."

Entenda a diferença entre as empresas de impacto e as convencionais

Tradicionais Impacto social
Modelo de negócio São organizações que têm como objetivo principal gerar lucro para seus acionistas. Podem ter departamentos ou iniciativas que promovam causas socioambientais Esses empreendimentos buscam o lucro tendo como a razão da sua atividade a resolução de algum problema (ou ao menos parte dele) social ou ambiental
Investidores Procuram empresas que têm alto potencial de crescimento e modelos de negócio que maximizem a sua rentabilidade Um fator importante para a escolha do projeto é a comprovação e a chance de acompanhar os impactos socioambientais produzidos
Público-alvo Pessoas das classes A e B. Nos últimos anos, a classe C tem tido maior participação devido ao aumento do poder de consumo São impactadas, principalmente, pessoas de grupos vulneráveis e as que têm faixa de renda mais baixas, incluindo as classes D e E
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