Donald Trump está preocupado que a NRA (Associação Nacional do Rifle), mais poderoso grupo de lobby pró-armas nos Estados Unidos, dê um tiro no próprio pé.
Enquanto Trump equilibra pratos para não melindrar o aliado que deu mais de US$ 30 milhões (cerca de R$ 120 milhões) a sua campanha e responder às demandas por controle de armas que ressurgem a cada novo atentado no país, a associação tenta sobreviver a um inferno astral.
A NRA precisa “parar a briga interna e voltar à GRANDIOSIDADE, RÁPIDO”, tuitou o americano em abril. Nos meses seguintes, o tiroteio dentro de casa só piorou. Transações financeiras nebulosas fizeram da NRA alvo de investigações do Congresso e da Procuradoria de Nova York.
Há ainda um tanto de fogo amigo, já que muitos associados se perguntam por que o chefe-executivo da NRA, Wayne LaPierre, pediu dinheiro da organização para comprar uma mansão de US$ 6,5 mi em Dallas —ele dizia se sentir inseguro após o massacre numa escola da Flórida em 2018.
A NRA frisa que o combinado jamais vingou. O que prosperaram neste ano, em compensação, foram questionamentos sobre a organização manter seu status tributário. Hoje, por ser listada como uma entidade sem fins lucrativos, ela é isenta de impostos.
Oliver North, que presidia a NRA até o primeiro semestre, se disse preocupado que a condição caísse ante a balbúrdia nas finanças. De quebra, cobrou que LaPierre seja investigado. O acusado respondeu: North o extorquia.
A atmosfera de guerra civil dilatou mais após ataques em El Paso e Dayton. Mais pressão caiu sobre a NRA, que rechaça algo que até Trump vem admitindo publicamente: a necessidade de verificação mais rígida sobre a compra de armas, como checar antecedentes penais e doenças mentais.
Cinco semanas antes dos atentados, Tara Mica, lobista da NRA no Texas, onde fica El Paso, celebrou: graças a esforços de gente como ela, o governador afrouxou a legislação sobre controle de armas.
Depois das chacinas, Trump sinalizou que poderia estar disposto a enrijecer os padrões para o comércio de fuzis, pistolas e afins. Mas entusiastas dessa ala acham que o presidente lhes deu uma piscadinha quando disse que “doenças mentais e ódio puxam o gatilho, não a arma”.
Nesta semana, organizações alinhadas à NRA bombardearam a atual gestão. Eles perderam a habilidade de defender a causa porque estão distraídos com as picuinhas caseiras, reclamou Rob Pincus, da Save the Second (referência à Segunda Emenda da Constituição americana, que respalda o direito de portar armas).
“Nós aplaudimos aqueles da mídia armamentista que estão relatando esses problemas muito reais [na associação]”, afirma. “Enquanto isso, os defensores continuam afirmando que todas as notícias estão vindo dos antiarmas.”
Não estão. A revista Fireworks News, por exemplo, questionou em artigo como proceder “se uma organização se tornou tão corrompida a ponto de causar danos àqueles que deveria representar”.
Em junho, dois movimentos indicaram a predisposição da NRA em botar ordem na casa. Um de seus oficiais mais vistosos, Christopher Cox, foi forçado a renunciar após ser acusado de pressionar pela saída de LaPierre.
A associação também fechou a NRA TV, canal de vídeos criado em 2016 e introduzido com um quadro em que um de seus apresentadores mais populares, Grant Stinchfield, destrói a marretadas uma TV sintonizada na CNN. Usa uma camiseta na qual se lê “Socialist Tears” (lágrimas socialistas).
Foi também o fim da linha para seu rosto mais proeminente, Dana Loesch, que chamava jornalistas de “ratos bastardos da Terra”. Acabou demitida do posto de porta-voz da NRA. “Já vai tarde” foi um sentimento que correu até entre membros da entidade.
Marion Hammer, primeira presidente mulher do grupo, engrossou o rol de insatisfeitos com o canal audiovisual.
A NRA nunca se melindrou com imagens controversas, como a releitura de contos de fadas que propuseram três anos atrás: a vovozinha da Chapeuzinho Vermelho, com um rifle em mãos, diz ao lobo mau que não pretende virar seu almoço. A historieta foi publicada num site da associação voltado à família.
Em setembro, contudo, o sinal amarelo acendeu quando Dana achou que a melhor forma de criticar personagens novas em “Thomas e seus Amigos”, popular desenho infantil com trenzinhos falantes, era evocar a Ku Klux Klan.
Era ridículo adicionar locomotivas “garotas” e, pior, uma vinda da África, argumentou a apresentadora em seu show, “Relentless” (implacável). Se os trens do desenho tinham todos faces cinzas, por que raios falar de diversidade?
Máquinas com capuzes brancos, símbolo da KKK, preenchem a tela, e Dana ironiza: “Ok. Justo. Entendi. [A animação] tem sido uma praga nas relações raciais por muito tempo.” O episódio foi a gota d’água numa maré extremista com a qual nem todos os filiados da NRA se identificavam.
Um apresentador chegou a dizer que terroristas radicalizados eram sempre muçulmanos, como se nunca houvesse existido supremacistas dispostos a abrir fogo contra minorias étnicas, seja numa igreja afroamericana nos EUA, seja em mesquitas na Noruega e na Nova Zelândia.
Além do desgaste na imagem da NRA, havia também o financeiro. Em 2017, uma produtora que cuidava do conteúdo do canal levou US$ 40 milhões da NRA.
Crise para uns, oportunidade para outros. Grupos favoráveis a um controle mais severo sobre o armamento veem na baderna na NRA uma brecha para a ascensão de uma liderança mais aberta ao diálogo.
“Muitos membros estão insatisfeitos com as posições extremistas na associação”, diz à Folha Rebecca Peters, da International Action Network on Small Arms. “Se o caos interno levar à saída da direção atual, há uma pequena chance de que gente mais moderada possa substituí-la”, afirma.
“A NRA pode tomar posições mais razoáveis, em vez de se recusar a permitir que o país faça qualquer coisa para conter a epidemia de violência armada.”
Se nada mudar, tudo bem, diz Peters. “Ainda assim a capacidade deles será reduzida porque estão ficando sem dinheiro. Assim, não poderão comprar as políticas e candidatos desejados. Isso tornaria mais fácil aprovar as leis de armas de bom senso.”
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