Descrição de chapéu
Venezuela América Latina

Fator Venezuela diferenciará nova maré vermelha na América Latina da anterior

Esquerdistas podem até restabelecer relações com Caracas, mas querem manter distância segura do chavismo

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Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor-executivo da Veja. É pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da USP

Em visita à Argentina no início de dezembro, o ex-presidente Lula subiu em um palanque ao lado do líder argentino, Alberto Fernández, de sua vice, Cristina Kirchner, e do ex-mandatário uruguaio José Mujica para prenunciar a reedição do período, entre a primeira e a segunda década deste século, em que governos de esquerda foram predominantes na América Latina. "Esses companheiros foram parte do melhor momento da democracia da nossa Grande Pátria, da nossa querida América Latina", disse Lula.

De fato, já se fala em uma nova "maré vermelha" na região, devido às recentes vitórias eleitorais da esquerda no Chile, com Gabriel Boric, e no Peru, com Pedro Castillo, no ano passado, ao retorno do grupo político de Evo Morales ao poder na Bolívia, em 2020, e ao favoritismo que Lula e Gustavo Petro vêm demonstrando nas pesquisas para as eleições deste ano no Brasil e na Colômbia, respectivamente.

O presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, antes de reunião com nomes indicados para formar seu ministério, em Santiago
O presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, antes de reunião com nomes indicados para formar seu ministério, em Santiago - Claudio Reyes - 28.jan.22/AFP

Entre 2006 e 2016, a esquerda governou de maneira mais ou menos simultânea, com intervalos aqui e ali, o Brasil, a Argentina, o Uruguai, o Chile, a Bolívia, o Peru, o Equador, o Paraguai e algumas repúblicas da América Central. Além, claro, da Venezuela. O fator Venezuela é o que fará a nova onda de governos de esquerda, se confirmada pelas eleições de Lula e Petro, ser essencialmente diferente da anterior.

Para garantir governabilidade interna e credibilidade externa, alguns dos novos governos de esquerda da região buscam distância do regime de Nicolás Maduro. Boric, que assume a Presidência em março, disse à BBC no mês passado que o projeto de esquerda na Venezuela "é uma experiência que fracassou" e que "a principal demonstração de seu fracasso são os 6 milhões de venezuelanos na diáspora".

A declaração é um reconhecimento de que o chavismo levou não só ao empobrecimento da população, mas também à corrosão da democracia, pois o que motiva os venezuelanos a fugirem de seu país é uma combinação de fatores econômicos e políticos. Assim como Boric, Castillo, presidente do Peru, também tenta tranquilizar setores domésticos que o veem como um chavista de chapelão.

À CNN, na semana passada, questionado sobre o que pensa dos regimes da Venezuela, de Cuba e da Nicarágua, Castillo disse: "Não faço parte disso e não gostaria que o Peru se convertesse em nenhum desses modelos". Eleito por um pequeno partido marxista, ele enfrenta uma crise com o Parlamento de maioria oposicionista. Em seis meses de mandato, já está em sua segunda reforma ministerial.

Até mesmo o governo kirchnerista vem trocando farpas com representantes de Maduro, depois de a Argentina, que preside o Conselho de Direitos Humanos da ONU, cobrar da Venezuela "investigações imediatas e exaustivas" sobre acusações de violações de diretos humanos que ocorrem no país.

Diosdado Cabello, considerado o número 2 do chavismo, revidou em seu programa na TV, sugerindo que a cobrança era resultado de pressão externa: "O Fundo Monetário Internacional pressiona muito? O Banco Mundial pressiona muito?". A tirada irônica de Cabello se deve ao fato de que a Argentina enfrentou nas últimas semanas duras negociações de sua dívida com o FMI. O acordo será submetido ao Congresso, mas enfrenta resistência da ala mais leal a Cristina. Seu filho, Máximo Kirchner, renunciou ao posto de líder do governo por se opor ao resultado da negociação com o fundo.

Durante seus mandatos presidenciais, entre 2007 e 2015, Cristina era muito próxima do governo chavista da Venezuela. Agora, no entanto, esse passado de afinidade assombra a atual vice. Em delações à Justiça espanhola, com o intuito de evitar a extradição para os EUA, Hugo Carvajal, um ex-general e ex-espião chavista, vem fazendo acusações graves contra figuras importantes da América Latina, incluindo Cristina.

Segundo Carvajal, o governo de Chávez enviou US$ 21 milhões à campanha que a elegeu, não apenas os US$ 800 mil apreendidos num avião particular que pousou em um aeroporto portenho, em 2007, no "caso do maletín". Gustavo Petro, candidato à Presidência da Colômbia, também foi citado. O ex-militar chavista diz que recursos venezuelanos irrigaram por baixo dos panos campanhas passadas de Petro.

Carvajal ainda precisa apresentar provas de suas acusações, mas fato é que elas mantêm viva a lembrança de que a "maré vermelha" anterior não foi só um período de alianças ancoradas em afinidades ideológicas ou projetos comuns de integração. Havia também a disposição de Chávez de ganhar força regional por meio da distribuição dos petrodólares e a influência que grandes empresas interessadas nas oportunidades que seu país oferecia —dispensando licitações— exerciam sobre seus próprios governos.

A nova onda vermelha que se vislumbra no horizonte é diferente da anterior porque não terá a ascendência de Chávez, que cobrava dos vizinhos uma postura de enfrentamento com os Estados Unidos e que preferia usar as instituições regionais para fins políticos em vez de comerciais.

A Venezuela não terá mais um papel de liderança, com capacidade de ditar os rumos da esquerda regional. Os novos governos de esquerda da América Latina podem até restabelecer as relações diplomáticas com Caracas, mas querem mais é manter uma distância segura do regime chavista.

Nicolás Maduro não tem nada a oferecer.

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