Esquerda chega dividida às eleições na França após subestimar ultradireita

Pesquisas sugerem que esquerdistas não chegam a segundo turno; França Insubmissa quer voto útil

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São Paulo

​A menos de três semanas das eleições presidenciais na França, as forças de esquerda, que há cinco anos governavam a segunda maior economia da União Europeia (UE), somam 25% das intenções de voto.

As principais legendas do espectro, enfraquecidas e divididas, penam para retomar fôlego diante de uma crescente direita populista. Caso a fórmula de 2017 se repita, aquele que poderá sair fortalecido dessa equação será, novamente, Emmanuel Macron, o presidente mais jovem da história do país, que tem tirado da diplomacia em torno da guerra na Ucrânia capital político doméstico e internacional.

Cartaz de campanha do esquerdista Jean-Luc Melenchon parcialmente rasgado e colado por cima de um cartaz do ultradireitista Eric Zemmour, em Paris - Joel Saget - 13.mar.22/AFP

A possibilidade de uma frente única de esquerda, apoiada por muitos eleitores como alternativa para oxigenar essa via, foi rechaçada pelos partidos. Assim, um quarto de votos se encontra esfarelado entre as principais siglas de esquerda, sem que nenhuma aglutine o apoio necessário, até aqui, para um segundo turno.

Jean-Luc Mélenchon (França Insubmissa) lidera o espectro. Com 14% das intenções de voto, porém, o político egresso do tradicional Partido Socialista está atrás dos nomes que despontam na corrida eleitoral: Macron (República em Marcha, de centro), com 28%, e Marine Le Pen (Reunião Nacional, de ultradireita), com 18,5%.

Os demais esquerdistas estão estacionados abaixo de 10%: o eurodeputado Yannick Jadot (Verdes, 5,5%), o deputado Fabien Roussel (Partido Comunista, 4%) e a prefeita da capital Paris, Anne Hidalgo (Partido Socialista, 2%), segundo a mais recente pesquisa do Ifop (Instituto Francês de Opinião Pública).

Ao longo das últimas semanas, um movimento ainda sem apoio institucional das demais siglas tem sido posto em prática pelo França Insubmissa: pedir que eleitores da esquerda e os que pretendem se abster —o voto não é obrigatório no país— deem voto útil a Mélenchon, de modo a levar a esquerda ao segundo turno.

"Cada um é pessoalmente responsável pelo resultado da eleição, porque cada pessoa tem a chave do segundo turno, que abre as portas para uma sociedade melhor", disse o candidato em comício no domingo (20). Ainda é difícil, porém, medir o sucesso que a tentativa de aglutinar votos suficientes terá.

Para analistas locais, o enfraquecimento da esquerda francesa teve razões bem claras: diante das mudanças acarretadas pela globalização e por ondas migratórias, os partidos não souberam reinventar seus programas, subestimaram a capacidade da direita populista de apresentar respostas à sociedade e minguaram, pouco a pouco, sua habilidade de diálogo com a classe trabalhadora.

"Sobretudo o Partido Socialista, que estava muito à vontade no exercício do poder, não soube reinventar uma cartilha ideológica", diz Jean-Yves Camus, analista político e pesquisador do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas. "Todos subestimamos a capacidade ideológica da direita de tirar proveito de problemas como a insegurança, atentados terroristas e a globalização."

Pascal Perrineau, professor da SciencesPo de Paris, faz leitura semelhante. Ele diz que, nos últimos anos, tem sido observada uma guinada da sociedade francesa para a direita. Diversas razões explicam o movimento, mas Perrineau chama a atenção para uma: os fenômenos migratórios, sensíveis no país.

"A esquerda fica constrangida com essa questão, não apresenta uma resposta homogênea e, assim, se afasta dos problemas das classes trabalhadoras", afirma. "E também não conseguiu até agora encontrar uma resposta crível para questões da globalização e do estado de bem-estar social, o que fez com que a direita ocupasse um terreno ideológico que foi deixado vago."

Desse vácuo surgem o que os analistas descrevem como figuras de ruptura política. "Os franceses se sentem cada vez mais desconfortáveis com a velha divisão entre esquerda e direita e buscam uma alternativa."

Eric Zemmour (Reconquista), polemista de ultradireita sem trajetória política que se lançou candidato com uma agenda anti-islã, seria o principal exemplo. Ele soma 13% das intenções de voto —está em 4º na corrida eleitoral— e tem conseguido fazer estragos na base de Le Pen.

Os dois, ainda que partilhem o campo da direita populista, são bem diferentes, segundo Gilles Ivaldi, pesquisador da SciencesPo especializado em direita radical.

Seriam três os fatores principais que diferenciam os direitistas: 1) programa econômico (Le Pen com propostas voltadas para as classes trabalhadoras e Zemmour para a pequena burguesia); 2) estratégia eleitoral (Le Pen buscando um discurso moderado e Zemmour com pautas radicais); 3) a estratégia a longo prazo (Le Pen quer angariar amplo apoio, inclusive da base de esquerda, enquanto Zemmour almeja prevalecer no campo da direita).

Perrineau diz que Macron também já simbolizou a alternativa para aqueles que não estavam dispostos a votar na esquerda tradicional (Socialistas), tampouco na direita (Republicanos). Em 2017, ele venceu o segundo turno contra Le Pen com quase o dobro de votos da ultradireitista —20,7 milhões contra 10,6 milhões—, naquela que foi a primeira eleição da história moderna da França sem que nenhum candidato das siglas tradicionais fosse além do primeiro turno.

De lá para cá, concordam os especialistas, os Republicanos (do ex-presidente Nicolas Sarkozy, que em 2022 concorrem com Valérie Pécresse) foram inábeis em retomar parte de seu eleitorado que migrou para a ultradireita, e os Socialistas (do ex-presidente François Hollande) falharam em atualizar seu programa de propostas. Uma opção à esquerda, que demandaria mais diálogo e possíveis alianças entre os partidos, também fracassou.

"A ideia de uma candidatura única à esquerda é utópica porque as esquerdas não pensam o mesmo em um grande número de questões. Eles não têm a mesma cartilha ideológica, seja na questão da guerra ou das instituições, da relação com a União Europeia ou na agenda econômica", afirma Jean-Yves Camus.

O conflito na Ucrânia exemplifica parte das diferenças. Enquanto as demais lideranças da esquerda prontamente criticaram o governo de Vladimir Putin e pediram sanções a Moscou, Jean-Luc Mélenchon demorou a fazê-lo. Mesmo quando o fez, apresentou divergência em um ponto que, para os demais candidatos, não parece central: ele defende que a França deixe a Otan (aliança militar ocidental).

Até aqui, as pesquisas locais sugerem que Macron e Le Pen disputarão o segundo turno, mais uma vez sem a esquerda. Nesse cenário, a questão que fica é se os eleitores estarão dispostos a votar no centrista para bloquear a presença da ultradireita no poder.

Já no caso de Mélenchon ter sucesso em sua tentativa de voto útil, o setor terá o desafio de fazer com que os eleitores abram mão do centro e priorizem a volta da esquerda ao Palácio do Eliseu.

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