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União Europeia

Direita nacionalista na França perde outra eleição, mas cresce na vida cultural

Em mutação, cenário continua a buscar presidente que lhe permita não comer só Président

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Pedro Sette-Câmara

Tradutor e escritor

Rio de Janeiro

Difícil não gostar da França. A França quer o que todos queremos: ser rica e moderna, mas sem se matar de trabalhar e sem pensar que o dinheiro é tudo na vida. Preservar as tradições, os pequenos produtores. Ser um país de classe média e fugir da massificação.

Porém, o mesmo queijo, feito por um desses maravilhosos pequenos produtores, comprado naquela lojinha de bairro que fecha na hora do almoço, custa o triplo da sua versão industrializada, na popular marca Président, vendida no supermercado que está aberto das 8h às 22h.

A candidata derrotada no segundo turno da eleição francesa, Marine Le Pen, fala a apoiadores reconhecendo a vitória de Emmanuel Macron - Gao Jing - 24.abr.22/Xinhua

E você, valoroso membro da classe média brasileira, vai esnobar um Président? Nem você nem um francês de classe média, podendo economizar dois terços do preço.

Porém, pensa o francês com toda a razão, por que eu não teria acesso à gastronomia tradicional do meu país?

A questão da identidade

Hoje, também, é impossível deixar de falar da discussão da "identidade francesa". É muito fácil pensar que ela não passa de uma preocupação "de extrema direita".

Para um brasileiro, pode ser difícil imaginar o que significa ter visto sua cidade ser completamente alterada pela imigração. Porém, convido o leitor a um exercício simples.

Eric Zemmour pode até ser a nova besta-fera da direita, mas gosta de repetir uma história interessante. Ele, que tem 63 anos, passou parte da juventude no "18ème arrondissement" de Paris. Um belo dia mais recente, caminhando por ali, um jovem com sotaque estrangeiro grita para ele: "Zemmour, vai te catar, teu lugar não é aqui".

Eu mesmo, que adoraria que houvesse mais imigrantes no meu Rio de Janeiro, admito que ficaria devidamente bolado se, ao passear pela Copacabana de "ma jeunesse", ouvisse de um deles: "teu lugar não é aqui".

Menciono o episódio porque uma coisa boa trazida por Zemmour, segundo o escritor Alain Finkielkraut, foi ter contribuído para evidenciar a questão de um país que recebeu muitos imigrantes, muito rapidamente, e hoje passa por situações inusitadas.

Por exemplo: na série de ficção "Baron Noir", o jovem deputado Cyril Balsan se depara com uma comunidade não branca num subúrbio de Paris que pede a presença de alunos brancos nas escolas. Não está em jogo apenas a ideia de que com alunos brancos supostamente o governo ofereceria um ensino melhor, mas também a ideia de que a República Francesa é a escola. Se a França se dividir em comunidades, deixará de ser a França.

A direita cresce na vida cultural

A direita autodenominada "nacionalista" francesa pode ter perdido mais uma eleição presidencial, mas suas questões são cada vez mais presentes.

Zemmour, judeu e filho de imigrantes argelinos, pode até ter repetido a história de que o governo de Vichy —aquele que colaborou com a ocupação nazista— não era tão malvado assim, mas, por definição, era impossível que ele tivesse o mesmo ranço vichyista da família Le Pen.

Não só. Parte da velha esquerda hoje é tratada como direita conservadora pela nova esquerda identitária. O amor ainda declarado por Sartre não poupa dessa classificação o próprio Finkielkraut, membro da Academia Francesa e apresentador do já venerável programa de rádio "Répliques".

Sylviane Agacinski, professora universitária de filosofia, que, diga-se de passagem, também é esposa de Lionel Jospin, ex-presidente do Partido Socialista, foi "cancelada" por militar contra a barriga de aluguel e por dizer que "infertilidade" é uma noção que só faz sentido quando aplicada a casais heterossexuais.

Elisabeth Roudinesco, já bem conhecida dos brasileiros, fez a crítica do identitarismo em "O Eu Soberano", publicado há dois meses pela Zahar. Também ela se surpreende com a mudança na vida intelectual francesa, embora tenha uma visão mais cautelosa do que a da jornalista Eugénie Bastié, do Figaro, cujo "La Guerre des Idées" é incontornável na discussão da "guerra cultural" francesa contemporânea.

A união secreta de direita e esquerda

Algo, no entanto, une as direitas mais e menos radicais com as esquerdas mais e menos radicais: uma suspeita das mudanças muito rápidas, uma suspeita do liberalismo econômico, encarnado, ao menos para a direita, na União Europeia.

Um programa recente da direitista TV Libertés, reproduzido no canal do Telegram da Cocarde Étudiante, falava da ocupação da Sorbonne por alunos militantes, revoltados com a necessidade de escolher entre Macron e Le Pen.

O apresentador então citava uma chamada do esquerdista Libération: "Estamos de saco cheio de reeleger o rei dos burgueses a cada cinco anos". Ao lê-la, não resistia a um comentário, acompanhado de um risinho: "O que, na minha opinião, não é inteiramente falso".

Esses franceses mais politizados podem estar cansados de ter de eleger "o rei dos burgueses". Porém, isso significa que eles gostariam de eleger um presidente que lhes permitisse não comer apenas Président.

É uma causa nobre. E o cenário cultural francês, em plena mutação, continuará buscando essa figura.

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