Plano de paz de Lula está paralisado e é visto com ceticismo pela Ucrânia

Kiev tem duas objeções à proposta brasileira e demonstra ceticismo em relação à influência do petista sobre Putin

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Kiev

O plano do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para negociar o fim da Guerra da Ucrânia está paralisado e enfrenta o ceticismo de Kiev. Após o desencontro na cúpula do G7, no Japão, em maio, não houve mais contato entre o alto escalão do governo brasileiro e a equipe do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, e tampouco há telefonemas ou reuniões planejados para o curto prazo.

Mesmo antes do fracasso da reunião, a Ucrânia se queixava de pouco interesse do Brasil para ouvir o seu lado. Em Hiroshima, o Itamaraty disse ter oferecido três horários para Zelenski, que, ao fim, não foi ao encontro. À Folha, o líder ucraniano se eximiu da culpa pelo fiasco, mas tampouco explicou o que ocorreu.

O presidente Lula durante cerimônia militar em Brasília - Pedro Ladeira - 31.mai.23/Folhapress

Em reserva, autoridades ucranianas disseram ser necessário criar uma relação de confiança para que o Brasil tenha um papel relevante num eventual plano de paz para acabar com o conflito. O chefe de gabinete de Zelenski, Andrii Iermak, disse em entrevista à CNN Brasil que vai convidar Brasília para uma cúpula de paz na Ucrânia, ainda sem data para ocorrer.

Lula e Zelenski conversaram por vídeo em 2 de março. Na conversa, o ucraniano pediu que o brasileiro ajudasse a organizar uma reunião com líderes da América Latina, mas o petista teria ponderado que vários países da região, como Nicarágua e Venezuela, tinham posições firmes a favor da Rússia, e outros não gostariam de dar a impressão de que estão se aproximando de um dos lados.

Por isso, segundo Lula, seria difícil promover uma cúpula dessa natureza e ficou acordado que voltaria a falar com Zelenski após retornar da viagem à China, em 12 de abril. Na versão dos ucranianos, o petista disse que tentaria organizar o encontro com líderes latino-americanos, mas nunca mais falou com Kiev.

Depois da visita à China, no entanto, o governo brasileiro recebeu em Brasília o chanceler da Rússia, Serguei Lavrov, uma passagem que causou mal-estar e críticas. Na tentativa de aparar arestas, Lula enviou Celso Amorim, seu assessor especial para política externa, à Ucrânia. O ex-chanceler, arquiteto da ideia de o Brasil mediar o conflito, reuniu-se com Zelenski em 10 de maio no palácio presidencial em Kiev.

Lá, ouviu do presidente ucraniano que existem diversos planos de paz, mas que a Ucrânia só está disposta a debater aqueles que passem pelos 10 pontos propostos pelo governo em Kiev no final do ano passado.

Desde o desencontro no G7, em 21 de maio, não foi discutido se haverá outra reunião. O governo brasileiro diz que poderia haver uma chance no final de junho, no encontro sobre financiamento ao desenvolvimento promovida pelo francês Emmanuel Macron ou na Assembleia-Geral da ONU, em setembro, em Nova York.

Antes disso, Lula pode se reunir virtual ou presencialmente com Vladimir Putin, mas um encontro bilateral com o presidente russo, após o petista não ter se encontrado com Zelenski, seria visto como mais um gesto brasileiro em favor de Moscou, comprometendo a reivindicação de ser mediador do conflito.

Putin participará da cúpula do Brics na África do Sul, em agosto. Como o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão contra ele, sob a acusação de crimes de guerra pelo suposto sequestro de crianças ucranianas, não se sabe se o líder russo comparecerá de forma remota ou presencial. A África do Sul ratificou o estatuto de Roma, que criou o tribunal, e, em tese, teria de cumprir o mandado e prender Putin ao desembarcar, algo que não ocorrerá, porque o país concedeu imunidade aos líderes na reunião.

A Ucrânia tem duas objeções à proposta de Lula. Não aceita decretar cessar-fogo nem iniciar o diálogo sem que os russos devolvam os territórios que anexaram ilegalmente. A Rússia ocupa parcialmente quatro regiões na Ucrânia: Donetsk e Lugansk, no leste, e Zaporíjia e Kherson, no sul, além da Crimeia, península tomada em 2014. As áreas são equivalentes a cerca de 18% do território do vizinho invadido.

"Congelar o conflito dá aos russos tempo para treinar e equipar as tropas. Enquanto isso, o mundo vai dizer que a guerra acabou, o conflito terá muito menos atenção, receberemos menos armas, haverá uma normalização", diz Andrii Zagorodniuk, ex-ministro da Defesa e atual assessor do governo da Ucrânia.

Já o deputado ucraniano Artur Gerasimov faz uma analogia: "Imagine que você tem um apartamento de três quartos. O vizinho invade a casa, ocupa a cozinha e começa uma guerra. Aí ele diz: 'Quero paz, mas a cozinha fica com a gente'. É o que a Rússia quer, cessar-fogo, e eles ficam com a Crimeia e o Donbass."

As autoridades ucranianas também demonstram ceticismo em relação à influência de Lula sobre Putin. Sentem mais firmeza na China, que mandou um enviado especial à Ucrânia em maio. Pequim quer que a contraofensiva de Kiev seja suspensa, e as sanções contra Moscou, retiradas, o que o Ocidente descarta.

Ainda assim, eles mantêm aberto o canal de comunicação com os chineses, que, por seu peso político e econômico, têm maior poder de barganha. Kiev acha possível, por exemplo, que a China convença Putin a fazer um gesto de boa vontade, desmilitarizando a região da usina nuclear de Zaporíjia, a maior da Europa.

Outro que estaria mais bem posicionado para mediar o conflito seria o líder da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que dialoga com o Ocidente e com a Rússia, o que permite tanto vender drones a Kiev como se manter em bons termos com Putin a ponto de negociar o pacto para a exportação de grãos ucranianos.

Mas o Brasil tem pontos a seu favor para atrair Kiev e, assim, atuar como mediador. Do Brics, é o país menos pró-Rússia. Xi Jinping e Putin estiveram juntos em Pequim antes da guerra e celebraram uma "amizade sem limites". Em março, o chinês foi a Moscou e reafirmou a aliança. A África do Sul é acusada pelos EUA de fornecer armas à Rússia. E a Índia ajuda a viabilizar a economia russa por meio da compra de petróleo, em volumes bem maiores do que os da venda de fertilizantes ao agronegócio brasileiro.

Além disso, o Brasil é visto como instrumental para influenciar a América Latina. A Ucrânia precisa do apoio do chamado Sul Global —por enquanto, só potências ocidentais têm enviado armas, imposto sanções à Rússia e declarado apoio explícito a Kiev. Na América Latina, apenas Chile, Uruguai, Costa Rica e Guatemala se posicionaram abertamente a favor do país ora invadido, e Zelenski precisa de votos na ONU para criar um tribunal internacional especial que julgue Putin, outro dos pontos de seu plano de paz.

Mas depõem contra o Brasil as seguidas falas de Lula, que, entre outras declarações, chegou a dizer que o líder ucraniano "não pode ter tudo o que pensa que vai querer", algo que foi interpretado como uma sugestão para Kiev abrir mão de territórios como a Crimeia, além da afirmação, na volta da visita à China, de que os EUA incentivam a guerra, referência ao envio de armas para a Ucrânia se defender da invasão.

Na visão do governo brasileiro, Zelenski pode negociar agora ou esperar mais seis meses –a situação militar provavelmente será a mesma, mas outras 100 mil pessoas, estima-se, terão morrido–, enquanto Putin estaria atrás de um fim com algo para mostrar ao público interno. Uma das concessões poderia ser a garantia de que a Ucrânia não integrará a Otan, a aliança militar do Ocidente, o que Kiev descarta.

"Hoje, os ucranianos preferem avançar na contraofensiva a negociar, porque a negociação agora implica perda de territórios", afirma Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP. "Eles têm pressa, e o Brasil quer conversar. A proposta brasileira ajuda a Rússia a ganhar tempo."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.