ONU enfrenta teste de relevância com evento esvaziado e competição de Brics e G20

EUA, anfitriões do evento, serão os únicos membros do Conselho de Segurança representados por seu presidente

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Washington e Brasília

O principal palco político global começa nesta terça-feira (19) marcado mais por suas ausências do que presenças, e para discutir sobretudo o fracasso no alcance de metas estabelecidas por ele próprio oito anos atrás.

O debate de alto nível da Assembleia-Geral das Nações Unidas, como é chamada a semana em que lideranças globais se reúnem na sede da entidade, em Nova York (EUA), acontece neste ano na sequência dos encontros de G7, Brics, G20, Asean e G77, para citar alguns mais relevantes.

O edifício sede da ONU, em Nova York, onde ocorre a sua Assembleia-Geral - Eduardo Munoz - 21.set.2021/Reuters

Esses fóruns multilaterais não são novos, mas têm ganhado maior peso com a transformação do tabuleiro geopolítico global motivada pelos choques dos últimos anos, como a pandemia, a Guerra da Ucrânia e a ascensão da Ásia.

A principal vantagem é que esses espaços conseguem congregar países com algum terreno em comum, o que permite acordos concretos —limitados, sim, mas mais do que a ONU, com seus 193 membros, tem conseguido entregar.

"Sempre houve ‘forum shopping’. Sempre houve a sensação de que, quando você não consegue o que deseja das Nações Unidas, vai a outro lugar", diz Joseph Majkut, do Centro para Estudos Internacionais e Estratégicos, com sede em Washington. "O que é diferente agora é que esses núcleos alternativos que estão se desenvolvendo são mais fortes, mais dinâmicos e há mais deles sendo liderados por competidores dos EUA, particularmente a China."

Sintoma do desinteresse pelo encontro, neste ano apenas um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, a instância mais poderosa do sistema das Nações Unidas, será representado por seu presidente —o americano Joe Biden, anfitrião do evento.

O russo Vladimir Putin não participa há anos, e deve ser representado pelo chanceler Serguei Lavrov. O chinês Xi Jinping, que também costuma mandar seu chefe diplomático, neste ano resolveu enviar seu vice para representá-lo, um cargo praticamente decorativo.

Desde que invadiu a Ucrânia, a Rússia tem se aproximado da China, e o antagonismo entre os dois países com os Estados Unidos e seus aliados, se agravado. No entanto, mesmo potências ocidentais resolveram esnobar o evento neste ano.

O francês Emmanuel Macron alegou um conflito de agendas para não comparecer. Na próxima semana, ele vai receber o rei Charles 3º, o líder do Partido Trabalhista britânico, Keir Starmer, e o papa Francisco.

O primeiro-ministro do Reino Unido não vai fazer parte da comitiva de sua ilha em terras gaulesas, mas tampouco vai para os Estados Unidos. Esta seria a estreia de Rishi Sunak na ONU, mas ele vai ficar em seu país em meio a crescentes problemas domésticos.

"Acho que todos nós gostaríamos de vê-los aqui, mas isso não vai mudar a intensidade das discussões que teremos", afirmou a embaixadora americana na ONU, Linda Thomas-Greenfield, ao ser questionada sobre as ausências em evento na última sexta.

Para além dos membros com direito a veto do Conselho de Segurança, o indiano Narendra Modi, que não só participou do encontro do Brics como acabou de receber o G20 em seu país, também não vai a Nova York.

Nesse contexto, as grandes estrelas da ONU neste ano devem ser o presidente americano, o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o ucraniano Volodimir Zelenski.

O petista deve repetir em seu discurso a demanda histórica do Itamaraty por uma reforma do sistema de governança internacional que resulte em maior representatividade para o Sul Global —apelo que deve encontrar muito mais apoio do que quando foi feito anteriormente.

As críticas não são ignoradas pela ONU. Na última quarta, o secretário-geral, António Guterres, afirmou que a reunião ocorre em um momento em que a humanidade enfrenta "desafios enormes" e em que as pessoas procuram em seus líderes "um caminho para sair dessa bagunça".

"E ainda assim, diante de tudo isso, divisões geopolíticas estão minando nossa capacidade de resposta. Um mundo multipolar está emergindo. Multipolaridade pode ser um fator de equilíbrio. Mas também pode levar a um agravamento das tensões, fragmentação e coisas piores", disse a jornalistas.

"Para unir nosso mundo multipolar, nós precisamos de instituições multilaterais reformadas e fortes, ancoradas na Carta das Nações Unidas e no direito internacional. As instituições multilaterais atuais que foram criadas após a Segunda Guerra Mundial refletem as dinâmica de poder e econômicas daquela época, portanto elas precisam ser reformadas", completou.

O tema deve ser um dos principais do discurso de Guterres na terça-feira.

Para Majkut, a ONU precisa se mostrar necessária e pensar em como se transformar para alcançar esse objetivo. Nesse sentido, o discurso de Biden e em que medida ele tratará dessas mudanças vai ser um ponto-chave.

"A ONU ainda está no coração da ordem multilateral e baseada na lei, mas ainda assim a impressão que se tem, em particular do Conselho de Segurança, é que ela não está mais totalmente adequada a este propósito", disse o embaixador da Estônia na ONU, Rein Tammsaar, à revista Foreign Affairs.

A discussão sobre a reforma do sistema ocorre em paralelo a uma grande avaliação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), uma lista de 17 metas ambientais, sociais e econômicas adotadas em 2015 e que deveriam ser atingidas até 2030.

Na metade do caminho, apenas 15% dessas metas seguem um ritmo que permite seu alcance dentro do prazo. As outras ou estão atrasadas, ou até retrocederam, diante do impacto da Covid nos indicadores sociais e econômicos globais.

Para reverter esse quadro, Guterres já declarou que pretende pressionar os Estados a aumentarem os recursos que disponibilizam para o programa. Um dos caminhos para isso é elevar os repasses para instituições financeiras, como o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional), para bancarem projetos que contribuam com os ODSs.

Outro grande tema do encontro será a Guerra da Ucrânia, com a presença de Zelenski em Nova York. Guterres já afirmou que se encontrará com o ucraniano, com o russo Lavrov e o turco Recep Tayyip Erdogan. A tentativa de trazer a Rússia de volta para o acordo de exportação de grãos do mar Negro deve ser uma das prioridades das agendas.

A crise climática também deve dominar boa parte dos debates dentro e fora da ONU —há previsão de um grande protesto no domingo contra o uso de combustíveis fósseis. Na quarta, ocorre um encontro intitulado Ambições Climáticas, convocado por Guterres, cujo objetivo declarado é acelerar ações de países, empresas e sociedade civil no combate ao aquecimento global.


COMO FUNCIONA O ENCONTRO DE LÍDERES MUNDIAIS

O que é a Assembleia-Geral?
É um dos seis órgãos da ONU e funciona como um Congresso do mundo. Cada Estado-membro —são 193— tem direito a um voto, mas seu poder de decisão é bastante limitado, já que a maioria das questões importantes é despachada no Conselho de Segurança.

O que ela faz, então?
Uma de suas principais funções é aprovar o orçamento anual da ONU. Esse é um dos poucos tópicos no qual a Assembleia tem poder decisório e não depende de outros órgãos. Também cabe a ela aprovar a indicação do secretário-geral e dos países que vão ocupar as vagas rotativas do Conselho de Segurança. Os nomes, no entanto, costumam ser negociados com antecedência e o plenário da Assembleia apenas os ratifica.

O que é o Debate Geral de Alto Nível?
É a semana em que líderes globais se encontram em Nova York, o que geralmente ocorre em setembro. No evento, cada país pode se inscrever para fazer um discurso, que neste ano são limitados a 15 minutos, embora seja comum extrapolarem. Paralelamente ao debate geral, ocorrem outros eventos e reuniões bilaterais.

Quais são os principais temas do encontro neste ano?
A discussão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), 17 metas definidas pelos países em 2015 para serem atingidas até 2030, mas das quais o mundo ainda está muito longe. Elas envolvem por exemplo proteção ao ambiente, combate à pobreza e equidade de gênero. O secretário-geral da ONU, António Guterres, quer impulsionar os países a investirem mais dinheiro na causa. Outro grande tema deve ser o combate às sequelas da pandemia, como o aumento da fome, e a Guerra da Ucrânia.

O que faz o Conselho de Segurança?
Sua função é decidir sobre questões de guerra e paz no mundo, como a imposição de sanções contra países e as autorizações de intervenções. O órgão é formado por 15 membros, sendo 10 rotativos e 5 fixos, com direito a veto: EUA, França, Reino Unido, Rússia e China. Diferentemente da Assembleia, o Conselho tem poderes para fazer resoluções vinculantes, que não podem ser ignoradas pelos Estados.

Apenas os presidentes e primeiros-ministros de cada país votam?
Não. Os chefes de Estado e de governo só vão a Nova York, onde fica a sede da ONU, para a abertura anual da Assembleia-Geral. Essa sessão dura uma semana e consiste numa sequência de discursos. Quando os líderes retornam a seus países, quem representa cada Estado é a missão permanente na ONU, comandada por um embaixador e formada por dezenas de diplomatas e assessores.

Quais líderes não devem comparecer neste ano?
Estão fora da lista o russo Vladimir Putin (que participou pela última vez em 2015), o chinês Xi Jinping, o indiano Narendra Modi, o francês Emmanuel Macron, o britânico Rishi Sunak e o filipino Ferdinand Marcos .

Por que o Brasil faz o discurso de abertura?
Embora não seja um rito previsto por algum ordenamento, o Brasil abre a Assembleia-Geral desde 1947, quando Oswaldo Aranha, então chefe da delegação do país, presidiu a Primeira Sessão Especial. Naquele ano, foi aprovada a criação do Estado de Israel com voto favorável do Brasil.

Como é definida a ordem de discursos?
Depois do Brasil, falam sempre os Estados Unidos, por serem os anfitriões. Depois dos dois países, a ordem é definida seguindo um sistema complexo que envolve o peso das delegações e quando ocorreu a inscrição, entre outros critérios.

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