Lula volta à ONU como porta-voz de emergentes em pedido de reforma do sistema internacional

Presidente brasileiro discursa nesta terça-feira e se encontra com Biden e Zelenski na quarta

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Brasília e Washington

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai abrir a Assembleia-Geral das Nações Unidas nesta terça-feira (19) com um contundente discurso em defesa da reforma do sistema de governança global. Trata-se de uma demanda histórica da diplomacia brasileira, mas que ganha força neste ano diante de críticas crescentes à ONU e da competição com outros fóruns multilaterais, como o recém-ampliado Brics e o G20.

Sintoma disso, lideranças do primeiro escalão de China, Rússia e Índia não participarão do evento, o que coloca o brasileiro na posição de "porta-voz" do chamado Sul Global em um encontro esvaziado. Do lado das potências, os EUA são o único dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança que serão representados no encontro por seu chefe de governo.

O presidente Lula durante a terceira cúpula UE-Celac, formada por líderes da União Europeia e da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, em Bruxelas, na Bélgica - Zheng Huansong - 18.jul.2023/Xinhua

Nesse cenário, os dois presidentes, junto com o líder ucraniano, Volodimir Zelenski, estarão nos holofotes durante a semana. O evento marca ainda o retorno do brasileiro ao principal palco internacional após mais de dez anos e a retomada da orientação internacionalista da diplomacia brasileira, em contraste com o isolamento durante o governo de Jair Bolsonaro.

A abordagem de Lula na pressão por uma reforma deve ser mais incisiva, com questionamentos a organismos e processos.

Outros temas que devem aparecer no discurso são inclusão social, combate à fome e proteção ao ambiente —em particular a defesa da soberania e da preservação da Amazônia. Lula vai chamar a atenção para a realização no Brasil da COP30, em 2025, em Belém.

Integrantes da equipe de política externa afirmam ainda que a menção à guerra entre Rússia e Ucrânia será feita de modo a não criticar nem defender nenhum dos lados. O petista deve pedir "paz justa e duradoura" e uma solução para o conflito baseada no direito internacional.

Estuda-se inclusive diluir o peso desse conflito ao mencionar outros que, na visão do Planalto, recebem menos atenção internacional, como no Sudão e no Iêmen.

O presidente chegou em Nova York na noite de sábado (16) e deve voltar ao Brasil na quinta (21). A longa estadia contrasta com a do seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), que passou menos de 24 horas na cidade no ano passado.

Essa não é a única diferença com a participação brasileira no evento de 2022 —a comitiva que acompanha o petista também é muito maior. Ao menos dez ministros estão nos EUA: Fernando Haddad (Fazenda), Marina Silva (Meio Ambiente), Nísia Trindade (Saúde), Mauro Vieira (Relações Exteriores), Luiz Marinho (Trabalho), Jader Filho (Cidades), Alexandre Silveira (Minas e Energia), Cida Gonçalves (Mulheres), Margareth Menezes (Cultura) e Silvio Almeida (Direitos Humanos).

Também estão em Nova York os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski e o presidente da Apex-Brasil, Jorge Viana.

Lula participou de um jantar oferecido pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) na noite de domingo, acompanhado por integrantes da Esplanada e pelo líder da entidade, Josué Gomes da Silva.

Na segunda, o presidente participou de um evento sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), uma das prioridades da ONU neste ano. Nesta terça, ele abre às 10h (horário de Brasília) o debate geral da assembleia —tradicionalmente, o Brasil é o primeiro país a falar.

Após quatro anos de isolamento de Bolsonaro na Assembleia-Geral, Lula vem sendo requisitado para encontros bilaterais e eventos. Sua equipe aponta que houve ao menos 50 convites feitos.

Ainda na terça, o brasileiro se reúne com líderes como o presidente da Áustria, Alexander van der Bellen, o primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, o premiê da Noruega, Jonas Gahr Store e o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas.

Na quarta o petista tem um encontro bilateral com o presidente americano, Joe Biden, às 13h50 (horário de Brasília). Depois da reunião, os dois chefes de Estado devem assinar um pacto sobre trabalho decente na presença de líderes sindicais e da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

O presidente participa de uma entrevista coletiva com jornalistas na quinta-feira, e em seguida volta ao Brasil.

Ainda na quarta-feira, Lula se reúne com o secretário-geral da ONU, António Guterres, e com o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski. A conversa com o ucraniano ocorre por volta das 17h (horário de Brasília), no hotel em que o brasileiro está hospedado.

A relação entre os dois é turbulenta. Em maio, houve uma tentativa de conversa entre os dois durante o encontro do G7, mas que acabou frustrado. O lado brasileiro argumenta que ofereceu opções de horário a Zelenski, que não conseguiu comparecer a nenhuma. Os ucranianos atribuem a culpa a Brasília, que teria demorado a responder o pedido de reunião.

Somam-se a isso críticas mútuas de ambos os presidentes. Lula afirmou no mês passado que Zelenski e o líder russo, Vladimir Putin, tentam ganhar a guerra enquanto "pessoas estão morrendo". Em resposta, o ucraniano disse que o petista concorda com "narrativas" do Kremlin e deveria ter "uma compreensão mais ampla do mundo".

Desta vez, segundo membros do governo brasileiro, a ideia é ouvir o que o ucraniano tem a falar. O posicionamento parece reiterar o que Lula disse em julho. "Não quero me meter na questão da guerra da Ucrânia e da Rússia. A minha guerra é aqui, é contra a fome, contra a pobreza, contra o desemprego."

Na semana passada, o brasileiro afirmou que Putin não seria preso ao vir ao Brasil para a próxima cúpula do G20, mesmo com um mandado em aberto por ele do Tribunal Penal Internacional. O petista recuou depois da fala, mas minimizou o papel da corte e disse que nem sabia que ela existia.

A posição foi reforçada por ministros de seu governo. Flávio Dino (Justiça) afirmou que o TPI funciona de modo "desequilibrado".

"O TPI é de algumas nações e não de todas, e é esse o alerta que o presidente fez, no sentido da necessidade de haver igualdade entre os países. Ou seja: ou todos aderem ou não faz sentido um tribunal que seja para julgar apenas uns e não outros", disse o ministro.

Dino sinalizou que o Brasil poderia rever a sua participação e adesão ao Estatuto de Roma, que instituiu a corte. Países como Estados Unidos, Israel e Rússia assinaram o tratado, mas não o ratificaram.

O ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos) aumentou o coro contra os países ocidentais. "Temos de ter cuidado para que o discurso de direitos humanos, por mais válido que seja, transforme-se em uma arma política para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o crescimento econômico do mundo em desenvolvimento", disse em entrevista ao jornalista Jamil Chade, do UOL.

O petista emenda a viagem a Nova York com sua primeira visita a Cuba do seu novo mandato, para participar da cúpula do G77.

O país caribenho, inclusive, deve ser mencionado no discurso –é previsto que Lula critique as sanções econômicas impostas à ilha por grandes potências, como os Estados Unidos.

Essa não será a primeira vez que o presidente vai mencionar Cuba e as sanções na Assembleia-Geral. Em sua última participação, em 2009, por exemplo, ele afirmou que o embargo ao país era um "anacronismo".

"Não somos voluntaristas, mas sem vontade política não se pode enfrentar e corrigir situações que conspiram contra a paz, o desenvolvimento e a democracia. Sem vontade política persistirão anacronismos como o embargo contra Cuba", afirmou.

Sua equipe ainda avalia mencionar o perdão da dívida externa de países africanos, uma bandeira que vem sendo defendida pelo mandatário em suas falas, mas não em grandes fóruns.

O petista vai mais uma vez cobrar a participação de países ricos no financiamento de projetos de preservação ambiental e desenvolvimento sustentável de países em desenvolvimento que contam com florestas naturais.


COMO FUNCIONA O ENCONTRO DE LÍDERES MUNDIAIS

O que é a Assembleia-Geral?
É um dos seis órgãos da ONU e funciona como um Congresso do mundo. Cada Estado-membro —são 193— tem direito a um voto, mas seu poder de decisão é bastante limitado, já que a maioria das questões importantes é despachada no Conselho de Segurança.

O que ela faz, então?
Uma de suas principais funções é aprovar o orçamento anual da ONU. Esse é um dos poucos tópicos no qual a Assembleia tem poder decisório e não depende de outros órgãos. Também cabe a ela aprovar a indicação do secretário-geral e dos países que vão ocupar as vagas rotativas do Conselho de Segurança. Os nomes, no entanto, costumam ser negociados com antecedência e o plenário da Assembleia apenas os ratifica.

O que é o Debate Geral de Alto Nível?
É a semana em que líderes globais se encontram em Nova York, o que geralmente ocorre em setembro. No evento, cada país pode se inscrever para fazer um discurso, que neste ano são limitados a 15 minutos, embora seja comum extrapolarem. Paralelamente ao debate geral, ocorrem outros eventos e reuniões bilaterais.

Quais são os principais temas do encontro neste ano?
A discussão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), 17 metas definidas pelos países em 2015 para serem atingidas até 2030, mas das quais o mundo ainda está muito longe. Elas envolvem por exemplo proteção ao ambiente, combate à pobreza e equidade de gênero. O secretário-geral da ONU, António Guterres, quer impulsionar os países a investirem mais dinheiro na causa. Outro grande tema deve ser o combate às sequelas da pandemia, como o aumento da fome, e a Guerra da Ucrânia.

O que faz o Conselho de Segurança?
Sua função é decidir sobre questões de guerra e paz no mundo, como a imposição de sanções contra países e as autorizações de intervenções. O órgão é formado por 15 membros, sendo 10 rotativos e 5 fixos, com direito a veto: EUA, França, Reino Unido, Rússia e China. Diferentemente da Assembleia, o Conselho tem poderes para fazer resoluções vinculantes, que não podem ser ignoradas pelos Estados.

Apenas os presidentes e primeiros-ministros de cada país votam?
Não. Os chefes de Estado e de governo só vão a Nova York, onde fica a sede da ONU, para a abertura anual da Assembleia-Geral. Essa sessão dura uma semana e consiste numa sequência de discursos. Quando os líderes retornam a seus países, quem representa cada Estado é a missão permanente na ONU, comandada por um embaixador e formada por dezenas de diplomatas e assessores.

Quais líderes não devem comparecer neste ano?
Estão fora da lista o russo Vladimir Putin (que participou pela última vez em 2015), o chinês Xi Jinping, o indiano Narendra Modi, o francês Emmanuel Macron, o britânico Rishi Sunak e o filipino Ferdinand Marcos.

Por que o Brasil faz o discurso de abertura?
Embora não seja um rito previsto por algum ordenamento, o Brasil abre a Assembleia-Geral desde 1947, quando Oswaldo Aranha, então chefe da delegação do país, presidiu a Primeira Sessão Especial. Naquele ano, foi aprovada a criação do Estado de Israel com voto favorável do Brasil.

Como é definida a ordem de discursos?
Depois do Brasil, falam sempre os Estados Unidos, por serem os anfitriões. Depois dos dois países, a ordem é definida seguindo um sistema complexo que envolve o peso das delegações e quando ocorreu a inscrição, entre outros critérios.

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