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Augusto de Arruda Botelho

Perigoso precedente

Tipificação criminal pode até incentivar sonegação

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O direito não é uma ciência exata. O debate, a divergência nos resultados, a pluralidade de opiniões, todo esse conjunto, faz a essência de um sistema democrático de justiça. Discordar do entendimento de juízes, promotores e advogados faz parte do jogo. Mais ainda, é o que faz o sistema amadurecer, melhorar, se adaptar a novas realidades entregando para a sociedade, com o maior grau de acerto possível, a Justiça.

Feita essa introdução, é plenamente possível que homens e mulheres de notório saber jurídico, de um histórico profissional e acadêmico dignos de aplausos, decidam de forma que não agrade a todos. Mais uma vez, faz parte do jogo.

O advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho - Zanone Fraissat - 24.jan.19/Folhapress

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento de uma matéria extremamente importante, principalmente para a economia brasileira (mais especificamente para o empresariado brasileiro) —e a decisão final foi a pior possível. Por maioria de votos, decidiram os ministros do STF que o não recolhimento do ICMS declarado pode configurar um crime tributário.

Para o leigo, faço aqui uma breve explicação: sonegar é diferente de não pagar imposto. Se um contribuinte ou uma empresa por alguma razão deixa de recolher um tributo, ele será acionado pela Justiça e executado. E esse imposto ou será pago ou bens poderão ser utilizados pelo poder público para quitar a dívida. Bastante diferente da conduta daquele que frauda, engana, ludibria a fiscalização para, de alguma forma, não pagar ou reduzir o imposto que deveria pagar. No segundo cenário é que temos os possíveis crimes tributários.

Chego agora ao ponto principal desta reflexão: a tônica, o formato e os argumentos dos votos de alguns ministros do STF no recente julgamento. Vejam, por exemplo, o seguinte trecho do voto do ilustre ministro Luís Roberto Barroso, cujas credenciais acadêmicas e profissionais dispensam maiores comentários, sobre a questão do ICMS: “Se o sujeito furtar uma caixa de sabão em pó no supermercado, o direito penal brasileiro é severo (...) Tratar diferentemente furto da sonegação dolosa faz parte da seletividade do direito penal brasileiro, que considera que crime de pobre é mais grave do que crime de rico”.

Aqui me pergunto quem em sã consciência discordaria dessa afirmação? Ninguém, por óbvio. A lei que prende o negro, pobre e primário —este sim o real cliente do nosso sistema de justiça criminal— deve servir também para punir os criminosos de colarinho branco. 

Ocorre que os mesmos princípios constitucionais devem ser rigorosamente observados para evitar injustiças tanto para os mais quanto para os menos favorecidos. A seletividade da Justiça brasileira é algo a ser diariamente debatido e enfrentado. Nossa Justiça ainda erra muito. Erra muito mais com os mais pobres, principalmente em razão da gritante dificuldade no acesso à Justiça, mas erra também com os mais ricos acusados de crimes financeiros.

Voltando ao tema do ICMS, a frase do ministro Barroso nos passa a seguinte sensação: já que o Judiciário brasileiro vem há anos vilipendiando o direito das minorias, vamos agora também aplicar o malfadado e pseudomilagroso populismo penal para os mais ricos. Sim, afinal, punir criminalmente a conduta de quem declara um imposto e por uma centena de razões possíveis deixa de pagá-lo não vai solucionar o problema e ainda criará duas graves consequências.

A primeira possível é que o empresário que declarava o ICMS e apenas não pagava, agora vai deixar de declarar. Ou seja, a decisão do Supremo pode acabar por incentivar a sonegação. A segunda consequência é mais grave ainda: retrocederemos décadas de construção jurisprudencial, inclusive de acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, e voltaremos ao tempo em que a prisão por dívida era algo possível. Prender um empresário que declara um imposto e deixa de recolher o valor no tempo determinado é, ao fim e ao cabo, prender o inadimplente —e milhares de pessoas podem se enquadrar nessa situação. 

Fazer do sistema de Justiça criminal um instrumento de arrecadação de impostos é dar sentido diametralmente oposto a que o direito penal deve ter: a última solução para um conflito.

Augusto de Arruda Botelho

Advogado criminalista, é cofundador e conselheiro nato do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

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