Numa consulta imaginária, deparo-me com a medicina procurando ajuda. Pergunto o que está acontecendo. Na alegoria, ela responde: “Ah, doutor! Não sei precisar claramente, mas posso afirmar que há cerca de dez anos exercia a profissão com muita convicção. Mas tudo mudou. São inúmeros os seguros-saúde, convênios etc. E o paciente parou de escolher o seu médico: fica preso à lista de profissionais das empresas da área. Foi aí o início da fragilização da relação médico-paciente? Sem falar do vilipêndio dos honorários profissionais...”.
Cada vez mais incomodada, a medicina mencionou o “despejo” (isso mesmo, “despejo”) de centenas de recém-formados no mercado, saídos de faculdades Brasil afora —sem a formação adequada, sem a vivência da estrutura de um hospital-escola para o adestramento e sem o aprimoramento das residências médicas, além da própria dificuldade do mercado em absorver esses novos profissionais.
E relatou a sensação de desmotivação “com o exercício da profissão que aprendi e vivenciei”. Falou, ainda, que não se tratava de saudosismo ou inconformismo, mas de profunda decepção com os rumos que a medicina e a saúde tomaram no país. Aumento progressivo de queixas e denúncias sobre a qualidade do atendimento e sequência de maus resultados terapêuticos, gerando inclusive episódios de agressões contra médicos. “Existe tratamento para mim, doutor?”
Examinando a paciente, notei que se encontrava em regular estado geral, com atitude e apresentação adequadas. Colaborativa no momento, consciente e orientada no tempo e espaço. Mas muito abalada com o status quo identificado: sistema de saúde com estrutura física inadequada ao exercício profissional, falta de leitos, ausência de investimentos em tecnologia e insumos na rede pública, desvalorização do capital humano da área da saúde em geral e do médico em particular.
Prontos atendimentos e prontos-socorros com efetivo de médico inexperiente —o que poderia explicar as crescentes ações judiciais e denúncias aos órgãos de classe (CRM, Coren)—, corpo clínico sem formação adequada, estrutura física insuficiente e falta de planejamento e de política de saúde. Um cenário desolador!
Mentalmente, formulei a hipótese de que a medicina apresentava sinais de transtorno depressivo grave, ansiedade e colapso mental. E conclui que a melhor conduta terapêutica seria estabelecer uma política de saúde, com avaliação da formação médica e valorização profissional, visando o acesso a boas práticas em termos de prevenção e promoção da saúde, com um plano de interiorização da assistência médica e de saúde, abandonando os programas hoje instituídos sem planejamento.
Nada disse à paciente, mas pensei que a cura exige um enfrentamento tão sério que não sei se a medicina, sozinha, tem forças para realizar.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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