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Mauro Mendes Dias

Os seres vociferantes estão entre nós

Discurso da estupidez vigora para promover e cativar a desaparição do humano

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Mauro Mendes Dias

Psicanalista e diretor do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise, é autor de “Entre Baratas e Rinocerontes” e “O Discurso da Estupidez" (ed. Iluminuras)

É um fato, basta escutar. A cada dia, os sentimentos de vergonha, de decepção, de falta de pudor, de educação e revolta se fazem presentes. Ao mesmo tempo, baratas zunem e rinocerontes vociferam para impor uma outra realidade. O riso virou escárnio; a liberdade, a leveza e o amor se contam como sinônimos de frouxidão a ser denegrida.

Há uma mutação em curso, anunciada antes pela literatura. A passagem do humano ao inseto foi contada por Kafka. O cargo de primeiro-ministro ocupado por uma barata foi tornado possível com Ian McEwan. O encantamento, o consentimento e o fascínio pela transformação em rinoceronte foram levados ao teatro por Eugène Ionesco.

Vivemos agora a passagem do texto à vida. Os animais foram incorporados por seres humanos. Sua prova maior é a eliminação do lugar e da função do diálogo como eliminação da presença da fala. Os animais humanos zurram, gritam e agridem. E o surpreendente é que conquistaram espaço dessa maneira.

Talvez somente agora estejamos em condições de acompanhar o que significa a passagem do humano ao animal, ao inseto, contada na literatura. Há sempre a presença do inesperado, do impensável e do inadmissível no surgimento da metamorfose. "Não, isso é impossível", ouve-se como pano de fundo nesses momentos. Mas acontece. Seres humanos agindo como verdadeiros animais.

Afinal, não fomos sempre um tanto animais? E admiradores da força do leão, do rinoceronte, da esperteza da cobra, da astúcia do bote? Sim, inventamos formas de compensar nossas limitações. O que temos agora à nossa volta é outra coisa.

O discurso da estupidez vigora para promover e cativar a desaparição do humano. Sua insistência conduz ao grau zero aquilo que traga lembrança da civilização e suas leis. Sejam elas de convívio ou respeito pela diversidade do patrimônio simbólico, o que visa esse discurso é a imersão nas águas fétidas onde as crenças em absurdos prosperam e contaminam.

O cortejo que acompanha e promove o discurso da estupidez aprendeu rapidamente com seus influencers. Escondem-se no anonimato das redes e desaparecem depois de promover redes de ódio. O afeto do ódio aí está para ser reconhecido em sua potência de destruição. Ele incendeia florestas, culturas, sujeitos, valores e compaixão, tornados obsoletos. Até as urgências foram destruídas. Ainda assim, acredita-se que basta um pó mágico, uma única medida bem calculada e certeira para fazer desaparecer as cinzas, e a vida voltar a florescer.

E os gritos e sussurros daqueles à nossa volta? E as histórias que não puderam prosseguir? E os padecimentos psíquicos que continuam silenciados? Quem, senão os empenhados em abordar e tratar de cada um dos desastres, terá condições de admitir e administrar um trabalho à altura de adubar outra vez o solo onde antes a humanidade crescia? Cabe ao discurso da estupidez promover a paixão da ignorância, da surdez e da cegueira. Outra vez, destino funesto, não se acreditava ser possível. O rei está novamente nu e se faz admirar num cortejo obsceno de fiéis.

Ao final da peça de Ionesco, somente um ser humano não cede à língua e aos hábitos dos rinocerontes. Ele se debate sozinho com suas inquietações. É desse lugar onde se encontra que podemos escutar a voz que reencanta a indignação e suscita o gosto de se reafirmar como humano.

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