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Jaqueline Scholz

A Anvisa deve liberar o cigarro eletrônico no Brasil? NÃO

Vista grossa das autoridades traz sérios prejuízos a conquistas antitabagistas

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Jaqueline Scholz

Cardiologista, é diretora do Programa de Tratamento do Tabagismo do InCor (Instituto do Coração) - Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Eu apoio resolução da Anvisa, de 2009, que proíbe a comercialização, a importação e a propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) no Brasil.

Países que acreditaram nesses produtos constatam que os usuários são reféns da dependência à nicotina, com epidemia de consumo entre os jovens. Diferentemente do cigarro comum, que demora 20 anos para causar doenças, o chamado eletrônico teve a capacidade de provocar uma grave síndrome respiratória —a evali— em mais de 2.800 jovens americanos no ano de 2019, provocando a morte de 69 deles.

Outro dado preocupante é que a mortalidade por doença cardiovascular nos Estados Unidos tem aumentando nos últimos dez anos entre os mais jovens —e coincide com o avanço do consumo do produto entre eles. Paralelamente, inúmeras publicações demonstram risco aumentado de infarto e derrame cerebral, bem como pesquisas revelam mecanismos de inflamação e lesões na parede dos vasos sanguíneos provocados por vapores que contêm nicotina e inúmeros aromatizantes. Metais pesados e outras substâncias não totalmente conhecidas chegam aos pulmões dos consumidores. A inflamação provocada pelo vapor está associada ao agravo da infecção por Covid-19 entre jovens, dobrando o risco de intubação.

A tão prometida redução de substâncias cancerígenas também está em xeque. Substâncias cancerígenas são detectadas na urina de usuários exclusivos do produto. Ter menos substâncias químicas, em comparação ao cigarro comum, não garante que as que estão presentes sejam inócuas e seguras. Ou seja, a prometida segurança vai se transformando em alerta: "Este produto causa dependência e faz mal à saúde".

É alarmante notar que o percentual de experimentação e uso dos referidos dispositivos vêm aumentando significativamente no Brasil, promovidos pela propaganda enganosa e irregular feita por influenciadores digitais e venda ilegal pela internet.

Os dados mostram que essa "vista grossa" das autoridades provoca estragos na nossa vitoriosa conquista de redução do tabagismo no Brasil. O percentual de fumantes entre jovens de 18 a 24 anos era de 28% em 1989, ante 10% em 2019. Tal redução de tabagistas teve impacto positivo na saúde individual e coletiva da população brasileira, sendo motivo de reconhecimento internacional.

Mas aí vem o cigarro eletrônico... A pesquisa PeNSE 2019 avaliou a experimentação do produto em adolescentes de 13 a 17 anos no Brasil. Revelou que 13,6% dos jovens de 13 a 15 anos de idade e 22,7% dos de 16 e 17 anos já haviam experimentado o cigarro eletrônico nos 30 dias anteriores à pergunta. A Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 detectou uso regular do dispositivo em 0,64% dos indivíduos acima de 15 anos, sendo 70% desse total na faixa entre 15 a 24 anos de idade. Isso representa quase 1 milhão de usuários.

Todo o trabalho para reduzir o tabagismo no Brasil está em risco com esses dispositivos. Já temos evidências suficientes para saber que viciam tanto quanto o cigarro tradicional, assim como também provocam doenças. O Brasil precisa tomar medidas para inibir o comércio ilegal e a propaganda enganosa desses produtos, além de fazer uma grande campanha publicitária alertando para o risco de dependência e doenças.

Ah, e, por favor, não caiam na ilusão de estimular fumantes a trocar o cigarro comum pelo eletrônico, imaginando que reduzirá "algum dano". Até agora não há nada que comprove isso. O fumante deve ser motivado a procurar tratamento adequado para deixar de fumar, condição que inegavelmente reduz danos e promove a vida e a saúde.

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