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Felipe de Azevedo Ramos

O cinza da quarta-feira

Diante dos infinitos matizes, a esperança há de permanecer firme

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Felipe de Azevedo Ramos

Padre, teólogo, professor e doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino (Itália) e medievista com o Diploma Europeu de Estudos Medievais

​Esta Quarta-Feira de Cinzas (2) abre a Quaresma com a célebre provocação: "Lembra-te que és pó e ao pó retornarás" (Gn 3,19). De fato, somos pó enquanto vivos, pois tudo passa nesta vida; pó enquanto mortos, pois nada nos restará. Tudo pó. Tudo cinza. Tudo­… Nada.

A própria quarta-feira é, em si, meio cinza. Ou melhor, ela é o cinza do meio… Decerto, foi nesse dia que se consumou a maior das traições: a de Judas Iscariotes.

Quarta-feira é o meio da semana ("mittwoch", em alemão) e, por assim dizer, o seu centro decisivo. Acerca desse "meio" temporal, o salmo 90 descreve o "demônio meridiano", que ataca ao meio-dia, provocando torpor físico e abulia espiritual. Dante inicia a "Divina Comédia" aos 35 anos, sublinhando a selva escura desse "meio caminhar de nossa vida", cuja duração provável é 70 anos, ou 80 para os mais fortes (Sl 89,10).

Quanto ao cinza, ressalte-se que, conforme sondagem europeia, menos de 1% da população o considera cor preferida. De fato, as cinzas sobre a cabeça, costume judaico-cristão, evocam o luto. No livro de Jó, por sua vez, as cãs simbolizavam a sabedoria. Na baixa Idade Média, a cor denotava penitência, em especial devido às vestes não tingidas, comuns entre os franciscanos (os "frades cinzas").

No século 15, o cinza adquiriu novos tons de significado. Considerada a cor intermédia entre o branco e o preto, remetia à esperança, a essa virtude do meio, própria ao homem que se afana nas lides cotidianas. Nesse sentido, encorajava o adágio latino: "Enquanto expiro, espero". Pois bem, lutar já é esperar.

A esperança da quarta-feira simboliza justamente a experiência adquirida no início da semana, que deita os olhos sobre o seu desfecho. Como dia medular, traz ainda uma aura de mistério, à maneira de uma foto em preto e branco. A esperança, deveras, não decepciona (Rm 5,5): por trás de nuvens cinzentas, o sol persiste em brilhar.

Todavia, o cinza conserva sempre uma atmosfera penitencial, pois remete, ademais, aos cabelos grisalhos do "meio do caminho". Se é que se alcança tê-los, pois a Dona Morte desconhece idade para o dia de seu inexorável encontro. De fato, alertou Camões: "Quão fácil é ao corpo a sepultura" ("Os Lusíadas" V. 83). Já a sete palmos da terra, "agora tudo é cinza. Resta apenas a caveira que a alma em si guardava", poetizou Álvares de Azevedo. Os vermes não têm preconceito: todos os corpos serão igualmente cinzas…

Reza o provérbio que a esperança é a última que morre. Na realidade, ela nunca se esvai; apenas se realiza. A alma no Paraíso já não tem mais o que esperar ou dias a contar, pois tudo se sublimará na plena posse da bem-aventurança, essa eterna policromia.

Na geena tampouco haverá cinza: afinal, brasas flamejantes não se incineram… As ruas infernais estão certamente ladrilhadas de "boas intenções", como ironiza o ditado, mas seu portal é peremptório: "Deixai toda esperança, ó vós que entrais" (Dante, "Inferno" III.9).

Em suma, o cinza tem infinitos matizes, bem como os rumos das cotidianas quartas-feiras. A esperança, porém, há de permanecer firme. Antes, a vida só é plena quando conformada àquilo que lhe dá sentido, àquilo que se espera. Com razão arrematou Paul Bourget em "Le Démon de midi": "Cumpre viver como se pensa, sob pena de, cedo ou tarde, acabar por pensar como se viveu". Que toda teoria do cinza e da quarta-feira se traduza, pois, em vida. Antes que seja tarde…

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