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Claudio Szynkier

Mundo afetivo brasileiro foi dominado por aversão ao 'estrangeiro'

Assassinato de Bruno e Dom é ápice de clima patológico de repulsa ao mundo

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Claudio Szynkier

Músico, artista plástico, crítico e pesquisador de arte

Nas reflexões do argentino Néstor García Canclini, antropólogo e estudioso contemporâneo da arte, da sociedade e da cultura, compreendemos que "estrangeiro" seria aquele que porta um segredo para a história e para o futuro de todos nós. O estrangeiro seria também aquele que não se enquadra na vida desenhada pelo sistema produtivo, pelo capitalismo afinal. Esse "diferente desconhecido" está em dissintonia plena com certos avanços arbitrários próprios do mundo moderno.

No plano concreto, os estrangeiros poderiam ser vistos como os que, diante da paralisia e da aceleração compulsória do consumo, pensam, criam e cultivam. Os que trabalham e sofrem, mas também os que ficam um pouco de fora deste "mundo" conforme ele se apresenta, enquanto rascunham o "próximo".

A sociedade contemporânea seria, portanto, a do desconforto constante, da tensão entre as leis do sistema produtivo global e a sensação estrangeira da alienação, que, no entanto, pode conter as respostas que faltam: residiria no estrangeiro o equilíbrio que torna a vida da coletividade capaz de se modificar e, em sua condição, os meios hábeis para nos inventarmos ciclicamente.

Se há uma marca presente no mundo afetivo e cultural brasileiro após o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, é a guerra ao estrangeiro. Não a uma etnia particular ou nacionalidade específica, mas aos estranhos do sistema: os indígenas, os pobres, mas também os antropólogos, os artistas. Uma guerra, em suma, contra os experimentadores das potencialidades estrangeiras, os autores das futuras formas de olhar em transe, um olhar que seria de germinação sobre o mundo, sobre o espaço, sobre aquilo que conhecemos mas desejamos ampliar.

O destino brasileiro dos últimos dez anos, e com maior força desde a tomada do poder pela direita em 2018, é marcado por essa aversão ao estrangeiro, mas também pela aversão à possibilidade de existência de um país que prospere como coletividade de afetos elevados, de anseios futuros nivelados por esses afetos.

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips é o auge desse clima cultural nacional.

A postura desvinculada, fria, abertamente confortável dos "anticomunistas" e "inimigos da corrupção esquerdista" na semana em que o enredo do assassinato duplo começou a se desvelar reafirma esse desconforto quanto ao estrangeiro como a característica mais emblemática do tempo.

Pode-se argumentar que não há legitimidade teórica para que se chame o arranjo cultural predominante pós-2018 de "fascismo" ou "neofascismo". Mas é improvável que a civilização brasileira, em um confronto analítico sincero com sua própria história a ser travado num futuro próximo, não seja obrigada a compreender que o que se materializou nestes anos foi a construção de uma sintonia brutal entre afetos de destruição, de alienação e de eliminação do outro no imaginário dos afetos.

Nestes anos, parcelas da elite e da população geral se uniram em torno de desejos de um "futuro livre de incômodos" (os mortos pela Covid-19 continuam de certa maneira vivos, para falarem isso) e pela vontade de uma normalidade dissimulada e anestesiada, uma sob a qual repousam outros cadáveres e sonhos, além dos de Bruno e de Dom, corpos e utopias de outras fisionomias, origens e complexidades. É um clima patológico e amortecido de antiutopia, simbolizada monstruosamente pelas mortes na floresta, que o Brasil respira radicalmente nos últimos tempos.

Para o filósofo norte-americano do campo da estética Stanley Cavell, uma obra de arte é, em si, "um mundo". Logo, a inversão não nos solicita grande esforço: o mundo é também uma obra de arte, com suas nervuras, suas microconstruções, sua unidade programada e perturbada pelas contradições, com seu intuito de permanência ou implosão frutificadora. Talvez a história reconstituída deste momento atual do Brasil no futuro possa ser compreendida como uma jornada repugnante pela negação da humanidade e seu cenário primordial, o mundo. Uma guerra contra o mundo e seu habitante por afinidade: o estrangeiro.

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