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Gabriella Arima e Roberto Luiz Corcioli Filho

Não somos vermes, somos sementes

Urge um debate maduro sobre o uso de drogas, sem preconceitos e achismos

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Gabriella Arima

Advogada e ativista, é diretora da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma), coordenadora do Núcleo de Política sobre Drogas e Saúde Mental da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas

Roberto Luiz Corcioli Filho

Juiz de direito, é mestre em criminologia pela USP, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do coletivo de promotores, juízes e defensores Repensando a Guerra às Drogas

Quem defende a legalização das drogas é verme que merece morrer, declarou recentemente o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. A fala exemplifica nitidamente como a narrativa e a discussão no país acerca das drogas está pouco embasada na ciência e muito em preconceitos ultrapassados.

Se o objetivo é a proteção da saúde de usuários e da sociedade quanto às consequências do uso abusivo, é inequívoco o absoluto fracasso do proibicionismo —política eficaz, por outro lado, em exacerbar nossos graves problemas sociais, como o racismo, conforme mostra o livro "Na Fissura", do jornalista Johann Hari.

As consequências da guerra às drogas têm se mostrado terríveis, especialmente para pessoas negras e marginalizadas. O Brasil ocupa o terceiro lugar entre as maiores populações carcerárias do mundo, sendo a maior parte pessoas presas por crimes relacionados à Lei de Drogas e que não possuem qualquer destaque no chamado crime organizado. No geral, são jovens pobres presos com quantidades pequenas e que não agiam com violência ou ameaça.

O fracasso na promoção da saúde, na redução de danos e o incremento de graves problemas sociais já bastariam para retirar qualquer legitimidade do atual modelo proibicionista brasileiro.

Indo além, no entanto, não se pode deixar de reconhecer também a ilegitimidade da vedação do Estado sobre o que os seus cidadãos adultos decidem consumir sem danos a terceiros —inclusive porque a imensa maioria do uso de drogas, mesmo das mais demonizadas, dá-se de maneira não problemática, e não apenas ao próprio usuário, mas também à sociedade, conforme demonstra o professor Carl Hart (Columbia University) nos livros "Um Preço Muito Alto: A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas" e "Drogas Para Adultos".

Cabe, sim, aos Estados, disseminar informações embasadas a respeito do uso consciente e dos riscos envolvidos, promovendo o adequado acolhimento das demandas de saúde e sociais —​muito distante de políticas violentas, como vemos nas operações junto à chamada cracolândia, convenientemente e falaciosamente reduzida a um problema de determinada droga.

Já retirar o direito individual à autodeterminação, lançando à ilegalidade aqueles que desejam usufruir de efeitos e experiências pessoais que julguem positivas (inclusive sob o prisma terapêutico, como mostrado na série "Como Mudar sua Mente", da Netflix), longe está do papel esperado por parte de Estados democráticos e pluralistas.

São tais fundamentos que vêm amparando a legalização e a discussão sobre diversas drogas em inúmeros países, possibilitando que, em razão da regulamentação, sejam criadas políticas de prevenção eficazes e se evite danos a terceiros e a usuários, expostos, na ilegalidade, a substâncias adulteradas ou com grau de pureza incerto —a favorecer overdoses evitáveis, por exemplo.

É inaceitável que os defensores do antiproibicionismo, baseados em vasta literatura e considerando inúmeras evidências científicas e sociais, sejam chamados de vermes.

Não nos surpreende, no entanto, a infeliz declaração vir do primeiro escalão do atual governo federal, que se orgulha do pouco caso que faz de uma mínima racionalidade e menospreza o debate público, colocando-se do lado oposto dos que cultivam valores democráticos.

Precisamos fazer um debate maduro sobre o uso adulto de drogas. Sem preconceitos e achismos pessoais. Com respeito à saúde (em seu conceito amplo, que não diz respeito somente à ausência de doenças) e aos direitos individuais. Como mostra o professor Hart, o problema não está nas drogas —afinal, a humanidade caminha com elas há milênios—, mas sim nos contextos sociais e econômicos problemáticos em que as pessoas estão inseridas. Não é demonizando-as que a sociedade brasileira conseguirá jogar para debaixo do tapete graves problemas decorrentes da desigualdade social e do racismo.

Em resposta à tal declaração: nós não somos vermes, ministro, somos sementes que carregam a esperança de implementar políticas públicas de drogas legítimas, racionais e humanizadas. A esperança de um futuro em que estejam garantidos os direitos humanos coletivos e individuais. E não somos poucos. Germinamos, crescemos e nos espalhamos mais a cada dia.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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