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Edilson Adão Cândido da Silva

Os inimigos do livro

Se há algo que não existe nas obras didáticas brasileiras é superficialidade

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Edilson Adão Cândido da Silva

Autor de livros educativos, é mestre em ciências (USP) e doutorando em geografia (Unicamp)

O mundo da educação assiste consternado a algo que até então parecia improvável: um secretário da Educação combater livros didáticos. Para justificar o injustificável, Renato Feder, de São Paulo, declarou nesta Folha sobre os livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD): "(...) Perderam qualidade, profundidade e conteúdo. Estão superficiais" ("Secretário de Educação de SP diz que livros didáticos escolhidos pelo MEC são superficiais", 2/8).

Ora, só nos resta uma constatação: o secretário Feder fala com propriedade sobre aquilo que desconhece. Ele não é do mundo da educação; seu negócio é outro. Senão, vejamos.

O governador, Tarcísio de Freitas, e o secretário de Educação, Renato Feder
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o seu secretário da Educação, Renato Feder - Flávio Florido/Seduc-SP

O PNLD é um programa educativo criado em 1985 e sucessor do Conselho Nacional de Livro Didático, instituído em 1938 durante o governo Getúlio Vargas. Atualmente, antes de chegarem às salas de aula, os livros didáticos do PNLD passam por um rigorosíssimo processo de avaliação, permanecendo em produção, em média, por três anos: cumprem um edital estabelecido pelo Ministério da Educação, este por sua vez ancorado em regras normativas baseadas na Lei de Diretrizes e Base, Diretrizes Curriculares Nacionais e no mais novo documento normativo da educação brasileira, a Base Nacional Curricular Comum, de 2017.

Após a produção, as obras são submetidas a uma competente banca avaliadora formada por acadêmicos das principais universidades brasileiras e professores da educação básica. Em seguida a esse trâmite, são aprovadas ou reprovadas. Professores de escolas públicas de todo o país recebem, então, um guia com os livros aprovados. Somente após esse filtro é que são escolhidos e, enfim, encaminhados aos alunos.

Toda essa trajetória hercúlea faz o livro didático brasileiro situar-se entre os melhores do mundo. A sociedade precisa ser esclarecida sobre esse fato para refutar mentiras —os livros didáticos são de altíssima qualidade. Não são escritos à revelia, ao léu. Há um longo percurso pautado por solidez conceitual, respeito à relação ensino-aprendizagem e rigor editorial.

Aula na escola estadual Dom Agnelo Cardeal Rossi, no Jardim Ângela, em São Paulo, na retomada da pandemia; livros didáticos serão abandonados por decisão do governo Tarcísio de Freitas - Rivaldo Gomes/Folhapress - Folhapress

O secretário afirma: "Estão superficiais". Ora, se há algo que não existe nos livros didáticos brasileiros é superficialidade. Está claro: o senhor Feder não leu os livros. Para além do ritual avaliativo ao qual são submetidas, as obras didáticas são construídas a partir de embasamento científico e em fina sintonia com pesquisas científicas. Suas fontes são primárias, balizadas em relatórios dos principais organismos nacionais e internacionais. E são atualizadas. Não percebeu isso, senhor secretário? Talvez, por descuido, tenha aberto uma das apostilas produzidas pelo governo de São Paulo, cujas fontes precárias poderiam até ser cômicas se não fossem trágicas.

O indisfarçado desejo de desqualificar os livros didáticos é o mote para o secretário apresentar sua solução mágica para a salvação da educação paulista: colocá-los em seu lugar um conteúdo digital. A secretaria da Educação paulista age assim exatamente no momento em que a Unesco acaba de desaconselhar o uso maciço de tecnologias digitais na educação. Tecnologia, sim, mas na dosagem adequada. Países com avançados índices educacionais estão procedendo dessa forma, pisando no freio da educação digital, que não se mostrou tão eficiente quanto se pensava.

Para a combinação correta entre educação e cultura digital, o ideal é exatamente como propõe o PNLD, que em seus editais equaciona o uso do livro impresso como protagonista e a tecnologia digital subsidiando as coleções didáticas. Combinação correta. A proposta irresponsável apresentada em São Paulo conduz ao uso excessivo de tela entre crianças e adolescentes. Estudiosos das áreas de oftalmologia e oftalmopediatria devem ter ficado estarrecidos com tal despropósito.

Sabe-se do infeliz estágio de desigualdade em que se encontra o Brasil e São Paulo. Fazemos nos valer aqui de um alerta dado no relatório "Monitoramento Global da Educação", divulgado pela Unesco recentemente: "Tecnologia a serviço de quem?". Na atual conjuntura e da forma estapafúrdia como se propõe em São Paulo, não temos dúvidas: do acirramento da injustiça. Haja atenção!

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