Descrição de chapéu
Joyce Alves, Patrícia Valim e Rosângela Hilário

A invenção do 'tribunal identitário'

Não é problema de cunho moral: universidade deve ser, de fato, para todos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Joyce Alves, Patrícia Valim e Rosângela Hilário

Respectivamente, professoras da UFRRJ, UFBA e Unir/USP

Estamos vivendo uma verdadeira cruzada de amplo espectro político contra as lutas que aprofundam a democracia no Brasil. A partir de um episódio envolvendo uma docente acusada de transfobia e racismo por uma aluna trans da Universidade Federal da Bahia (UFBA), um setor progressista gastou alguma tinta na imprensa para desqualificar as lutas por políticas de identidade e pelo fim da cultura do assédio no ambiente acadêmico. E o fizeram de duas maneiras.

Primeiro, considerando o todo pela parte para afirmar que, hoje, a universidade pública brasileira é o pior lugar para se trabalhar em razão da existência daquilo que se acredita ser um "tribunal identitário" compostos por minorias radicais responsáveis por julgamentos céleres e linchamentos baseados em cunho moral e valores elevados. Segundo, estabeleceram relações de equivalência entre as ações dos bolsonaristas do movimento "escola sem partido" e a militância negra, feminista e LGBTQIA+ para deslegitimar problemas concretos por meio de uma batalha imaginária entre a guerra moral da esquerda e a guerra cultural dos bolsonaristas. Será?

A ilustração de Ariel Severino, feita sobre textura de papel amassado com traços grossos e retos na cor preta. Um perfil raivoso de uma cabeça cor lilas, com a boca bem aberta. Da boca sai um braço cor laranja e o punho fechado com uma luva de box vermelha.  Toda a figura aparece com maior destaque e contraste sobre a textura do papel amasado.
Ilustração de Ariel Severino - Folhapress

De acordo com pesquisa divulgada no Portal Geledés, apenas 219 doutoras pretas são professoras em cursos de pós-graduação do Brasil —menos de 3% em um universo de 53.995 docentes. Se analisarmos com o recorte de mulheridades, como é o caso de mulheres trans, o número é abaixo de uma dezena de docentes. Esse número está ligado ao fato de que pessoas trans e travestis representam apenas 0,2% dos estudantes em instituições públicas de ensino superior, de acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes, 2022).

No último relatório divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2022, o Brasil continua sendo campeão de desrespeito e violência com pessoas trans, além de ser o país do mundo que mais as matou nos últimos 14 anos. Por isso, em 2019, o Supremo Tribunal Federal criminalizou a transfobia sob os mesmos parâmetros do crime de racismo, de maneira que se alguém trocar o pronome de uma pessoa trans propositalmente, a conduta é tipificada na lei 7.716/89 —a lei de racismo em analogia à transfobia.

Além disso, em uma pesquisa sobre as práticas de assédio moral e estratégias de enfrentamento da Escola de Administração da UFBA, a autora demonstra que —em um grupo com 826 discentes, 47 docentes, 23 servidores e 29 terceirizados— 64,9% afirmam que sofreram, presenciaram ou ouviram falar de práticas de assédio moral na instituição (Ribeiro, 2020). Desse grupo, 40,4% das pessoas respondentes afirmaram que não acreditam na existência de enfrentamento para as práticas de assédio moral na instituição e 30,7% declararam que talvez não existam estratégias de enfrentamento. Isso explica as razões pelas quais apenas 16,9% desse grupo questionaram e expuseram a atitude do agressor.

Esses dados demonstram que, na ausência de boas práticas de permanência, prevenção e combate ao assédio com órgãos especializados e recursos humanos preparados, as pessoas têm denunciado nos muros da instituição, nas portas dos banheiros e nas redes sociais. Também demonstram que não se trata de um problema isolado, pois em um universo com 71 instituições públicas de ensino superior, 52,3% não possuem qualquer política de prevenção de ocorrências —e, dessas, 70% não possuem medidas de combate ao assédio (Beltrame, 2021).

Não estamos diante de um problema de cunho moral, mas de um grande desafio que é transformar a universidade pública brasileira em um espaço bom para todas, "todes" e todos.

* As autoras são pesquisadoras da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.