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David Uip

Após quatro décadas, Aids ainda desafia o Brasil e o mundo

Doença foi negligenciada, com ausência de campanhas e corte de orçamento

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David Uip

Médico infectologista, é reitor do Centro Universitário da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC); foi secretário da Saúde de São Paulo (2013-18) e de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde (2022)

Em 2023 completam-se 40 anos da publicação científica que descreveu o primeiro caso autóctone de Aids no Brasil. O trabalho, que escrevi com o professor Vicente Amato Neto (1927-2018), o infectologista Marcos Boulos e outros oito autores, relatou o caso de um homem que chegou ao nosso consultório extremamente magro, com febre e diagnosticado, em princípio, com infecção por Mycobacterium avium intracellulare, uma espécie de "prima" da tuberculose. Ele morreu pouco tempo depois.

Desde o princípio da epidemia global de HIV/Aids, apenas outra doença causou tanta comoção e pânico: a pandemia de Covid-19. Transmitidas por vírus, ambas geraram estresse, medos, incertezas, vulnerabilidades e preconceitos. Foram 50 milhões de mortes por Aids no mundo entre 1981 e 2023, e cerca de 7 milhões por Covid —2019 até o momento.

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Campanha de testagem para detecção do vírus HIV, no Dia Mundial da Aids

As duas enfermidades também foram marcadas, no começo, por estigmas em relação aos doentes, agravamento súbito dos quadros clínicos e mortes em curto espaço de tempo. Em um primeiro momento, não havia métodos farmacológicos preventivos, profiláticos ou de tratamento. "Não faça sexo" (Aids) e "não saia de casa" (Covid) foram as primeiras recomendações. A prevenção ao HIV por meio do uso de preservativo nas relações sexuais, e de máscaras, no caso do Sars-Cov-2, vieram na sequência.

Mais recentemente, as terapias pré e pós-exposição (PrEP e Pep) vêm auxiliando a prevenir infecções pelo HIV, enquanto o desenvolvimento de vacinas contra a Covid e campanhas de imunização contiveram a pandemia. Para a Aids não há vacina, mas antirretrovirais (ART) potentes ajudam a manter muitos soropositivos com carga viral indetectável, o que impede a transmissão do vírus.

Mais de quatro décadas se passaram, e a Aids continua sendo um grande desafio em saúde pública no mundo. São 39 milhões de pessoas vivendo com HIV/Aids, muitas delas privadas de tratamento, sobretudo crianças. No final de 2021, 28,7 milhões de soropositivos tinham acesso ao tratamento antirretroviral. No ano passado, o planeta registrou uma morte por Aids a cada minuto.

No Brasil, 990 mil pessoas vivem com HIV/Aids, e 88% conhecem seu diagnóstico. Em 2022 foram contabilizados 51 mil novos casos e 13 mil mortes pela doença. A epidemia atinge principalmente as populações mais vulneráveis, chamadas de populações-chave: travestis, transexuais, gays e outros homens que fazem sexo com homens, além de profissionais do sexo, pessoas privadas de liberdade e usuários de drogas.

O diagnóstico precoce, o acesso rápido ao tratamento e o adequado acompanhamento dos pacientes são as formas mais eficazes na busca pela supressão viral, que impede a transmissão sexual do HIV ao mesmo tempo em que proporciona melhor qualidade de vida aos soropositivos. O uso de preservativos entre parceiros sexuais não monogâmicos consiste na melhor forma de prevenção de novas infecções, havendo, como complemento e não substituição, a PEP e a PrEP.

A Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids) propõe a eliminação da epidemia da enfermidade como problema de saúde pública até 2030, desde que seja alcançado índice de 95% de diagnóstico de pessoas que vivem com HIV/Aids, tratamento de 95% dos soropositivos com antirretrovirais e obtenção de uma taxa de 95% de supressão viral daqueles que estão em tratamento.

Uma meta ousada, que esbarra em obstáculos como a desigualdade entre países, formas de transmissão, acesso a ART e barreiras como o preconceito racial, a homofobia e a transfobia.

O Brasil vai conseguir atingir a meta proposta pela Unaids? A doença foi negligenciada, com ausência de campanhas e até mesmo a redução do orçamento em um país que desde 1996 tornou obrigatório, por lei, o tratamento universal. O futuro parece promissor, mas o caminho ainda é longo e tortuoso.

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