Em 2023 completam-se 40 anos da publicação científica que descreveu o primeiro caso autóctone de Aids no Brasil. O trabalho, que escrevi com o professor Vicente Amato Neto (1927-2018), o infectologista Marcos Boulos e outros oito autores, relatou o caso de um homem que chegou ao nosso consultório extremamente magro, com febre e diagnosticado, em princípio, com infecção por Mycobacterium avium intracellulare, uma espécie de "prima" da tuberculose. Ele morreu pouco tempo depois.
Desde o princípio da epidemia global de HIV/Aids, apenas outra doença causou tanta comoção e pânico: a pandemia de Covid-19. Transmitidas por vírus, ambas geraram estresse, medos, incertezas, vulnerabilidades e preconceitos. Foram 50 milhões de mortes por Aids no mundo entre 1981 e 2023, e cerca de 7 milhões por Covid —2019 até o momento.
As duas enfermidades também foram marcadas, no começo, por estigmas em relação aos doentes, agravamento súbito dos quadros clínicos e mortes em curto espaço de tempo. Em um primeiro momento, não havia métodos farmacológicos preventivos, profiláticos ou de tratamento. "Não faça sexo" (Aids) e "não saia de casa" (Covid) foram as primeiras recomendações. A prevenção ao HIV por meio do uso de preservativo nas relações sexuais, e de máscaras, no caso do Sars-Cov-2, vieram na sequência.
Mais recentemente, as terapias pré e pós-exposição (PrEP e Pep) vêm auxiliando a prevenir infecções pelo HIV, enquanto o desenvolvimento de vacinas contra a Covid e campanhas de imunização contiveram a pandemia. Para a Aids não há vacina, mas antirretrovirais (ART) potentes ajudam a manter muitos soropositivos com carga viral indetectável, o que impede a transmissão do vírus.
Mais de quatro décadas se passaram, e a Aids continua sendo um grande desafio em saúde pública no mundo. São 39 milhões de pessoas vivendo com HIV/Aids, muitas delas privadas de tratamento, sobretudo crianças. No final de 2021, 28,7 milhões de soropositivos tinham acesso ao tratamento antirretroviral. No ano passado, o planeta registrou uma morte por Aids a cada minuto.
No Brasil, 990 mil pessoas vivem com HIV/Aids, e 88% conhecem seu diagnóstico. Em 2022 foram contabilizados 51 mil novos casos e 13 mil mortes pela doença. A epidemia atinge principalmente as populações mais vulneráveis, chamadas de populações-chave: travestis, transexuais, gays e outros homens que fazem sexo com homens, além de profissionais do sexo, pessoas privadas de liberdade e usuários de drogas.
O diagnóstico precoce, o acesso rápido ao tratamento e o adequado acompanhamento dos pacientes são as formas mais eficazes na busca pela supressão viral, que impede a transmissão sexual do HIV ao mesmo tempo em que proporciona melhor qualidade de vida aos soropositivos. O uso de preservativos entre parceiros sexuais não monogâmicos consiste na melhor forma de prevenção de novas infecções, havendo, como complemento e não substituição, a PEP e a PrEP.
A Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids) propõe a eliminação da epidemia da enfermidade como problema de saúde pública até 2030, desde que seja alcançado índice de 95% de diagnóstico de pessoas que vivem com HIV/Aids, tratamento de 95% dos soropositivos com antirretrovirais e obtenção de uma taxa de 95% de supressão viral daqueles que estão em tratamento.
Uma meta ousada, que esbarra em obstáculos como a desigualdade entre países, formas de transmissão, acesso a ART e barreiras como o preconceito racial, a homofobia e a transfobia.
O Brasil vai conseguir atingir a meta proposta pela Unaids? A doença foi negligenciada, com ausência de campanhas e até mesmo a redução do orçamento em um país que desde 1996 tornou obrigatório, por lei, o tratamento universal. O futuro parece promissor, mas o caminho ainda é longo e tortuoso.
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