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Elisabetta Recine e Inês Rugani Ribeiro de Castro

Sua comida tem marca ou identidade?

Cozinhar não é apenas atividade; é prática emancipatória, ato revolucionário

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Elisabetta Recine

Professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, é presidente o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)

Inês Rugani Ribeiro de Castro

Nutricionista sanitarista, é professora associada do Instituto de Nutrição da Uerj, onde coordena o Núcleo de Alimentação e Nutrição em Políticas Públicas|

Sobre alimentação, não há uma semana que passe sem declarações de quem defende o lucro do seu próprio quadrado, gerando manifestações e até desmentidos posteriores.

É lógico! Não há nada mais essencial para a vida humana digna do que a alimentação, algo que gera muitos lucros, mas que, por outro lado, demonstra de maneira evidente os descaminhos que percorremos, como revelam os dados do 2º Vigisan (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil): em 2021-22, 33 milhões enfrentavam a em fome e mais da metade da população vivia algum grau de insegurança alimentar.

Entregador de comida por aplicativo circula pela avenida Paulista, em São Paulo Danilo Verpa - 3.out.23/Folhapress - Folhapress

Ao profetizar que deixaremos a cozinha em dez anos ("Em dez anos, ninguém vai mais cozinhar, diz presidente do iFood", 17/2), quem exatamente será afetado? Quem olha o Brasil de cima não reconhece nossas desigualdades, não apenas econômicas, mas de gênero. Quem cuida da comida são principalmente mulheres, seja em casa ou no trabalho. Então, não cozinhar poderia ser considerado um ato de libertação.

Errado. Por trás de toda comida desproporcionalmente barata há exploração, seja de quem planta, de quem vende, de quem cozinha ou de quem entrega.

Precisamos encontrar coletivamente caminhos que não reforcem uma desigualdade de gênero já insuportável. Mulheres, principalmente as de baixa renda, organizam seu cotidiano em torno dos cuidados domésticos, das pessoas que vivem com elas e da alimentação da família. Para mudar essa realidade, é preciso que esse cuidado seja compartilhado por todas as pessoas. Ampliar o número de cozinhas nas comunidades, tornar universal a educação infantil e fundamental em tempo integral, ampliar a oferta de alimentos frescos e várias outras medidas precisam ser priorizadas para ganharem escala.

Mas cozinhar leva tempo, é caro, é monótono, e um aplicativo oferece um mundo de opções: do fast food ao supernatureba; portanto, dá para ter comida saudável pelo aplicativo.

Errado. Na maioria das vezes, não. A escolha virtual, preponderantemente baseada em apelo visual e preço, tende a resultar em pratos com excesso de calorias. A aparente variedade é enganosa, pois tendemos a optar pelo conhecido e seguro. Para uma alimentação mais saudável, é fundamental ampliar o repertório e valorizar memórias e culturas alimentares.


E o desafio da praticidade, tão real em tempos acelerados? Recebemos constantemente mensagens sobre nossa incapacidade de cuidar de nós mesmos. O apelo da terceirização que resolverá nossas vidas. Está provado pela ciência que, a partir de certo ponto, a prática se incorpora à rotina e se torna mais eficiente. A recompensa de você cuidar de você mesmo e de quem você decidir cuidar. Tem algo mais libertador do que isso?

Para mudar essa realidade, precisamos repensar nossas escolhas e práticas alimentares. Podemos tornar o cuidado em torno da comida um ato de convívio e compartilhamento. Esperamos que, em dez anos, olhemos para hoje com o orgulho de termos superado as cortinas de fumaça sobre o que é bom, possível e saudável. Que nossa alimentação seja a expressão de uma sociedade mais justa, equitativa e sustentável.

Cozinhar não é apenas uma atividade, é uma prática emancipatória, um ato revolucionário.

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