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Igor Mauler Santiago

Churchill, Bolsonaro e as joias

TCU é claro sobre presentes de alto valor, mas Justiça dará a palavra final

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Igor Mauler Santiago

Advogado, é doutor em direito tributário

Em 1945, numa reunião no Egito, o rei da Arábia Saudita deu a Churchill trajes típicos, joias e armas cravejadas de brilhantes que hoje valeriam R$ 750 mil. No mesmo dia, ao jantar com os seus assessores, o primeiro-ministro britânico experimentou jovialmente os presentes —não há fotos da cena— e os incorporou ao Tesouro britânico (Andrew Roberts, Churchill, p. 954-955).

Em 2021, o governo saudita enviou a Jair Bolsonaro e à então primeira-dama, Michelle, joias e relógios avaliados em R$ 5,5 milhões. O kit masculino passou despercebido; o feminino foi apreendido pela Receita Federal, que resistiu à pressão para liberá-lo nos últimos dias do mandato. Em 2019, em visita àquele país, o ex-presidente já recebera outras joias e um Rolex, depois vendido (e recomprado) nos Estados Unidos.

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Joias que foram enviadas pela Arábia Saudita e apreendidas pela Receita no aeroporto de Guarulhos, em 2021 - Danilo Verpa - 14.mar.23/Folhapress - Folhapress

No momento em que a Justiça põe sob lupa os possíveis crimes do ex-presidente, é importante lembrar aquele que primeiro levou o seu antigo ajudante de ordens e hoje delator, o tenente-coronel Mauro Cid, a ter de dar explicações.

O estatuto dos servidores públicos e o código de conduta da alta administração federal proíbem o recebimento de presentes, mas não se aplicam ao presidente da República. Este segue regras especiais (lei 8.394/91 e decreto 4.344/2002), cujo alcance o Tribunal de Contas da União firmou em 2016 (acórdão 2.255). Em suma, elas dizem serem bens pessoais do presidente —garantidos à União a preferência em caso de venda e o poder de impedir alienações para o exterior— os documentos não administrativos e os livros angariados durante o mandato, desde que não recebidos em audiências com chefes de Estado e de governo estrangeiros. Presentes de qualquer outra espécie só admitem apropriação privada se forem personalíssimos ou de consumo direto.

Destituídas de maior valor cultural e não recebidas em evento oficial, as joias em princípio poderiam qualificar-se como bens particulares. Mas o valor também foi um critério adotado pelo TCU, que rechaça como absurda a ideia de "uma grande esmeralda" ou "um Picasso" passarem ao patrimônio do presidente, quaisquer que sejam as circunstâncias da sua entrega por uma nação amiga.

Resta saber que crimes podem ter sido cometidos.

Consideradas desde sempre bens públicos, como aponta o TCU, as joias não se submeteriam a tributos na importação, o que afasta a ideia de descaminho (fraude fiscal nas operações de importação e exportação). A análise se dirige, portanto, para o peculato (apropriação por agente público de bem detido em virtude do cargo, com pena prevista de 2 a 12 anos de reclusão, além de multa).

Caso a posição do TCU seja superada em juízo, e se conclua que as joias eram mesmo bens particulares, o ex-presidente estará livre de consequências fiscais quanto às que foram apreendidas.

O perdimento —pena aplicada pela Receita Federal após o prazo de defesa do viajante— exclui os tributos incidentes na importação (Imposto de Importação, PIS/Cofins, IPI e ICMS), seja por lei expressa, seja por preceder o seu fato gerador, que é o desembaraço aduaneiro. Assim, deveria excluir também quaisquer efeitos criminais, pois não se frauda tributo que não chegou a ser devido —embora o Superior Tribunal de Justiça tenha visão contrária no particular.

O efeito será oposto, porém, quanto aos dois conjuntos de joias que, não detectados pelo fisco, ingressaram no país em 2019 e 2021. Constituindo bens privados (essa é a premissa neste cenário alternativo), deveriam ter sido declarados e tributados na entrada. Não o tendo sido, estará configurado o descaminho, cuja pena é de 3 a 8 anos de reclusão, mais multa. O pagamento antes do recebimento da denúncia talvez extinga a punibilidade do delito —o que o STJ repele, mas o Supremo Tribunal Federal já admitiu algumas vezes.

Por ora, apurações sobre a adulteração do cartão de vacina e a tentativa de golpe de Estado avançam com maior velocidade no Judiciário. Não serão, contudo, as únicas batalhas que o ex-presidente terá de enfrentar.

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