Descrição de chapéu
Maria Paula Bertran

Lava Jato, 10: a acomodação incômoda

Confissões nos EUA romperam, momentaneamente, a corrupção disseminada

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Maria Paula Bertran

Professora de direito econômico da USP (Ribeirão Preto), é autora de “Previsível, mas Problemático: O papel dos EUA na Operação Lava Jato, por força da FCPA" (ed. FDRP/USP)

A Operação Lava Jato completou dez anos neste mês de março. Recentemente, vimos a anulação dos acordos e multas da Odebrecht e da J&F. Nenhum desses fatos deve ser visto como surpreendente. Na verdade, o surpreendente foi ter existido, anos atrás, o padrão persecutório que hoje se desfaz.

A corrupção é um estado que encontra estabilidade em duas situações opostas: aversão à corrupção e a corrupção disseminada.

0
Policiais federais durante buscas na 7ª fase da Operação Lava Jato, em 2014 - Luiz Carlos Murauskas - 14.nov.2014/Folhapress - Folhapress

Em comunidades avessas à corrupção, os comportamentos dos outros dificultam a vida do indivíduo que deseja corromper. Os riscos envolvidos com a corrupção são maiores do que os potenciais ganhos de ser corrupto. Indivíduos que oferecem subornos são facilmente expostos. É difícil encontrar parceiros para subtração dos cofres públicos ou desvio das leis. Não é fácil encontrar pessoas para acobertar os comportamentos impróprios. O corrupto nada sozinho em um mar de compatriotas honestos. Nesses ambientes, há maiores chances de um corruptor ser descoberto e sancionado. As penas serão provavelmente maiores. O ambiente pressiona os indivíduos corruptos a absterem-se de suas intenções, reforçando a estabilidade de uma sociedade avessa à corrupção. Este é um ciclo virtuoso.

Já em sociedades com corrupção disseminada, os comportamentos alheios levam as pessoas à percepção de que os benefícios da corrupção superam as vantagens da honestidade. Um empresário sistematicamente excluído de contratos públicos, por exemplo, resigna-se e aceita conspirar mesmo que, a princípio, não quisesse fazer isso. A sensação de transgressão diminui.

Fenômeno semelhante tende a acontecer com os políticos. Os poucos honestos percebem que os pares corruptos conseguem os melhores postos de comando. Mesmo que os políticos quisessem ser éticos, também se acomodariam à lógica de benesses, agrados ou corrupção explícita. Esse contexto diminui a disposição das pessoas para denunciar e combater a corrupção. Poucos ousam falar de forma independente. Delatar um ilícito pode levar tanto à desaprovação social quanto a perigos físicos. O funcionário que expuser a ilicitude do chefe será demitido. O empresário que acusar o cartel sofrerá retaliação. A eventual decisão corajosa de primeira instância será rapidamente reformada pelas instâncias superiores. Este é um ciclo vicioso.

O padrão brasileiro de corrupção sempre foi acomodado no ciclo vicioso. As operações Castelo de Areia e Satiagraha são exemplos históricos de manchetes que representaram sua própria limitação. Esse padrão é coerente com nossos líderes políticos: Sarney, Collor, Fernando Henrique Cardoso (e os rumores de corrupção durante as privatizações), Lula e Bolsonaro nunca foram reconhecidos pela repulsa contundente às acomodações de um ambiente corrupto.

Por que, então, a Lava Jato foi tão diferente? Por que, há dez anos, uma operação com potência jamais vista? Há vários motivos. Mas algo fundamental é que as instituições brasileiras não estavam sós, senão que acompanhadas da força jurisdicional dos Estados Unidos. As principais empresas implicadas na Lava Jato foram condenadas também nos EUA por uma lei chamada "Foreign Corrupt Practices Act" ("Lei sobre Práticas de Corrupção no Exterior", em tradução livre), que autoriza a ampliação da jurisdição norte-americana para crimes que não ocorreram em território norte-americano. Nos EUA, as principais empresas brasileiras envolvidas na operação confessaram seus crimes e pagaram multas. As confissões nos EUA fizeram suas condenações no Brasil serem inexoráveis, o que promoveu uma ruptura momentânea com o equilíbrio estável da corrupção disseminada.

Os grandes casos promovidos pelos EUA são motivados exatamente pela expectativa de fazer com que o país-sede da empresa condenada rompa com o equilíbrio do ciclo vicioso. Farta literatura técnica aponta para esse objetivo, como os livros de Kevin Davis ou Cornelia Woll. Esse rompimento foi esboçado no Brasil por algum tempo, nos anos imediatamente seguintes aos momentos mais palpitantes da Lava Jato. Mas a força inercial da corrupção disseminada como estado de equilíbrio foi mais forte. E voltamos ao estado de coisas esperado desde sempre.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.