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Alberto Zacharias Toron

Democracia e foro privilegiado

Após idas e vindas, passou da hora de o próprio Congresso enfrentar a matéria

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Alberto Zacharias Toron

Advogado criminalista e doutor em direito penal (USP), é especialista em direito constitucional (Universidade de Salamanca), professor de processo penal (Faap) e conselheiro federal da OAB

Há uma ideia bastante difundida segundo a qual é inadmissível que numa sociedade fundada sob o dogma da igualdade de todos perante a lei permita-se que alguns agentes públicos tenham como juiz não o de primeira instância, que julga a todos os reles mortais ("ordinary people"), mas tribunais —e, pior, propiciando a impunidade.

Juízes de direito, quando acusados da prática de um crime, são julgados diretamente pelo Tribunal de Justiça. Desembargadores e governadores de estados e do Distrito Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça. Ministros dos tribunais superiores e de Estado, além de parlamentares federais, são processados e julgados diretamente pelo Supremo Tribunal Federal.

Silhueta da escultura A Justiça, em frente à fachada do STF, na Praça dos Três Poderes, em Brasília - Fellipe Sampaio - 23.nov.22/SCO/STF - FELLIPE SAMPAIO/SCO/STF

Essas competências estão definidas na Constituição e atinam com a própria correção do funcionamento da Justiça. É dizer não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas visam a "proteger a Justiça contra ingerências de poder na própria Justiça" (Moreira Alves).

Essa ideia, já nos idos de 1962, foi captada pelo ministro Victor Nunes Leal e imortalizada no livro "Coronelismo, Enxada e Voto", ao dizer: "Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele". É "uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado". Imaginem se um juiz pudesse julgar um desembargador, autoridade hierarquicamente superior. A aplicação da lei seria uma quimera.

Portanto, ao desequiparar certos cidadãos, a Constituição busca o bom funcionamento do sistema de justiça. Mas há temas espinhosos.

Cometido o crime durante o exercício do cargo, cessa a competência do tribunal para julgar o ex-agente público? Durante mais de 36 anos, vigorou a súmula 394, do Supremo Tribunal Federal, de modo a permitir o foro por prerrogativa de função. Em 1999, diante do grande número de inquéritos e processos em trâmite na corte, o STF, para reduzir sua competência, cancelou-a.

O que a muitos pareceu salutar e democrático acabou por trazer problemas como o do parlamentar que, às vésperas do julgamento, renunciava ao mandato para subtrair a competência do STF e ser julgado pelo juiz de primeiro grau, postergando a solução do caso. Essa faculdade lhe permitia, anomalamente, escolher quem seria o seu juiz e, eventualmente, contar com a prescrição.

Já em 2018, ao julgar uma questão de ordem na ação penal 937, o plenário do Supremo, por proposta do ministro Luís Roberto Barroso, restringiu o foro por prerrogativa "apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas". Certo, mas a Constituição não faz essa distinção quando confere ao parlamentar o direito de, desde a diplomação, ser julgado pelo STF (art. 53, §1º).

A Suprema Corte restringiu sua competência onde a Constituição a outorga sem qualquer distinção, mas a ampliou quando estivesse finalizada a instrução do processo, se, por renúncia ou não reeleição, o parlamentar não mais ocupasse o cargo. Seguindo a lógica do cancelamento da súmula 394, isso não é permitido pela Carta.

Agora, em primoroso voto no julgamento de um habeas corpus, o ministro Gilmar Mendes propõe uma espécie de retorno mitigado aos termos da súmula 394, mas só quando o crime tenha sido praticado no cargo e em razão das funções. Na verdade, a proposta visa corrigir disfunções criadas com o cancelamento dessa súmula.

O curioso, para não dizer paradoxal, é que antes se achava que o foro privilegiado garantiria a impunidade. Hoje, porém, a Câmara dos Deputados cogita suprimi-lo, ao menos para parlamentares, porque percebe o STF como uma corte punitiva e que priva o condenado da possibilidade de recorrer. Seja como for, passou da hora de o próprio Congresso Nacional, democraticamente, enfrentar a matéria.

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