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Drauzio Varella

Objetivo da indústria em regularizar o cigarro eletrônico é aliciar adolescentes

O que pretendem é ganhar mais dinheiro às custas de novos dependentes

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Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor do livro 'Estação Carandiru' e colunista da Folha

Descontada a escravidão, o cigarro é o maior crime da história do capitalismo internacional. Nem sei quantas vezes repeti essa frase.

O cigarro nada mais é do que um dispositivo desenhado para administrar nicotina, a droga que provoca a dependência química mais feroz e escravizadora que a medicina conhece. Enquanto os usuários das demais drogas capazes de causar dependência química conseguem passar muitas horas ou dias sem usá-las, as crises de abstinência da nicotina enlouquecem o dependente em minutos.

Homem fuma cigarro eletrônico - Leticia Moreira/ Folhapress

Elas o fazem porque provocam surtos insuportáveis de ansiedade. Não falo em teoria: fui dependente de nicotina dos 17 aos 36 anos. O desespero para fumar é avassalador. Eu saía da sala do cinema já com o cigarro apagado na boca, louco para chegar à rua; cheguei a trocar o pijama, pegar o carro e dirigir meia hora para comprar cigarro só porque descobri que o maço estava vazio. Nem ia fumar, mas a perspectiva de acordar sem o cigarro ao alcance da mão era assustadora.

Na minha adolescência, cerca de 60% dos homens com mais de 15 anos fumavam. A epidemia entre as mulheres explodiu um pouco mais tarde, quando a indústria do fumo entendeu que a publicidade agressiva dirigida às meninas duplicaria o mercado de dependentes. Problemas éticos ou de consciência? Nem pensar. O que seria um crime a mais para quem vivia dele?

Por incrível que possa parecer aos jovens de hoje, naquele tempo não tínhamos acesso às informações sobre os malefícios do fumo. Embora as provas de que causava câncer viessem dos anos 1950, as companhias contratavam cientistas de aluguel para alegar vieses em todos os estudos publicados nas revistas médicas. Com verbas publicitárias astronômicas, proibiam que jornais, revistas, o rádio e a televisão publicassem qualquer comentário sobre as doenças causadas pelo cigarro.

Vieram os anos 1980, e as dificuldades para conter as divulgações da associação do fumo com diversos tipos de câncer, ataques cardíacos, AVCs e tantas outras enfermidades graves ficaram cada vez mais problemáticas. Diversos países proibiram a publicidade nos meios de comunicação de massa, o fumo em ambientes públicos e adotaram várias políticas restritivas.

No Brasil, graças à iniciativa do Ministério da Saúde, chefiado por José Serra, a publicidade nos meios de comunicação foi proibida no ano 2000. Sem o poder de chantagear emissoras de rádio, TV, jornais e revistas com as ameaças de corte nas verbas publicitárias, a indústria tabaqueira viu as vendas despencar em nosso país.

Livres para falar e fazer campanhas contra o cigarro, médicos e instituições brasileiras tiveram voz para mostrar o que o cigarro realmente é: um vício chinfrim que dá hálito repulsivo e deixa mau cheiro no corpo e nas roupas. As imagens publicitárias de mulheres lindas e homens poderosos foram desconstruídas.

O resultado desse trabalho foi impressionante: menos de 10% dos brasileiros fumam atualmente. Fumamos menos do que nos Estados Unidos e em todos os países da Europa.

Como reagiu a indústria? Inventou outro dispositivo para administrar nicotina, os cigarros eletrônicos. A desculpa é a de que ajudariam os interessados a parar de fumar, propriedade jamais demonstrada pela ciência. A você, leitora, e a você, leitor, faz sentido administrar uma droga como forma de combater a dependência à mesma droga?

Aprendi nas cadeias a não menosprezar o crime, entretanto. O que eles pretendem agora? Que a Anvisa libere a comercialização dos cigarros eletrônicos, com as justificativas falsas da redução de danos e de que é melhor liberar do que conviver com o contrabando de produtos de qualidade duvidosa.

Contem essa história para outro. O que é qualidade duvidosa de um produto que causa tanto sofrimento e tantas mortes?

O que eles pretendem é distribuir os chamados vapes em todos os pontos de venda da imensa rede que comercializa cigarros convencionais pelos quatro cantos do país. O único objetivo é o de aliciar nossas crianças e adolescentes. Pretendem ganhar mais dinheiro às custas de novos dependentes. Vamos nos acovardar?

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