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Marjorie Marona e Fábio Kerche

Delação premiada e a herança da Lava Jato

Mudança no mecanismo exige discussão aprofundada, sem oportunismos

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Marjorie Marona e Fábio Kerche

Respectivamente, professores de ciência política da UFMG e da UniRio e autores de "A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a Erosão da Democracia no Brasil" (ed. Autêntica)

No começo do mês, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) incluiu na pauta de votações do plenário um requerimento de urgência de votação de um projeto de lei que proíbe a delação premiada de presos. O argumento é que denunciar comparsas detrás das grades é incompatível com a exigência de voluntariedade da manifestação do delator.

A delação premiada foi criada em 1999, mas ganhou força em 2013 a partir das manifestações das "Jornadas de Junho". Frente ao mosaico de demandas e de movimentos sociais que saíram às ruas, o governo buscou responder à agenda caótica com medidas de combate à corrupção, lançando a Lei das Organizações Criminosas. Entre diversas iniciativas, assegurou o direito de promotores e delegados negociar com acusados com bastante autonomia, inclusive do Poder Judiciário. Reforçou ainda mais atores que pouco respondem à sociedade.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress

Desde a sua recepção pelo direito brasileiro, a delação premiada tem sido alvo de controvérsia e objeto de reformas —algumas das quais resultaram em adaptações feitas pelos tribunais. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal validou o seu uso em matéria civil, enquanto o Superior Tribunal de Justiça garantiu o direito ao delatado de verificar a legalidade do acordo firmado em seu desfavor.

A tentativa de restringir a delação premiada é mais uma herança negativa da Lava Jato. Na sanha de lutar contra a corrupção a qualquer preço, mesmo que isso significasse passar por cima do devido processo legal, Sergio Moro, Deltan Dallagnol e sua turma abusaram do instrumento.

A estratégia era usar de prisões cautelares para constranger acusados. Mesmo os que não estavam atrás das grades sabiam que bastava a decisão discricionária de um Moro ou de um Marcelo Bretas para ver o sol nascer quadrado por um longo período. Cerca de 280 acordos de delação premiada foram firmados ao longo das investigações. Delatar era a melhor alternativa. A única chance de sair da cadeia era contando, ou inventando, crimes de terceiros. A redução das penas era significativa, e a delação servia como prova mesmo sem ter a corroboração de outras evidências.

A articulação ente prisões cautelares e acordos de delação como estratégia investigativa foi uma característica marcante da atuação da Lava Jato. Para além do fato de que o uso generalizado da delação pode criar incentivos perversos para a fabricação de acusações, a falta de critérios objetivos e transparentes para a concessão de benefícios aos delatores deu margem ao direcionamento das investigações a determinados grupos políticos e empresariais, o que foi reforçado pela divulgação seletiva de informações à imprensa, violando os princípios de presunção de inocência e o devido processo legal.

A iniciativa casuística de Arthur Lira se constitui sob o espectro do lavajatismo. O presidente da Câmara retoma o projeto de autoria do então deputado Wadih Damous (PT-RJ), elaborado em 2016, no contexto da Operação Lava Jato. Há dúvidas se a proposta poderia beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), alvo de investigações da Polícia Federal que se baseiam em informações da delação premiada firmada com o tenente-coronel Mauro Cid, quando já estava preso.

É importante que haja uma discussão aprofundada sobre o mecanismo da delação premiada, mas isso demanda o tempo e a publicidade que contrastam com o requerimento de urgência apresentado e com o timing da decisão de Lira.

A delação premiada é um importante instrumento investigativo no combate ao crime organizado. Foi utilizada, por exemplo, no caso do assassinato de Marielle Franco. Limitar o uso da delação premiada pode enfraquecer não apenas o combate à corrupção, mas também às milícias e ao narcotráfico. Por outro lado, é importante evitar que os abusos da Lava Jato voltem a comprometer a legitimidade de investigações criminais e abalar a confiança pública na Justiça.

O legado negativo da Lava Jato não deve ser, contudo, utilizado oportunisticamente. O Congresso precisa achar o tempo e o modo adequados para avançar com as deliberações que antecedem reformas legislativas dessa monta. Com frequência, as discussões sobre possíveis reformas judiciais, como essa, voltada a regular um instrumento processual, vem à tona em conjunturas de tensão entre os Poderes.

Não raro, o acervo de propostas legislativas é ativado ao sabor da conjuntura política, instrumentalizando o processo legislativo e reduzindo o debate de fundo. Se é esse o caso, mais uma vez perdemos a oportunidade de aprender com os erros da Lava Jato.

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